segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

ESPANTALHOS E O TEMA DA LIBERDADE: O USO DAS ARTES CÊNICAS

ESPANTALHOS E O TEMA DA LIBERDADE: O USO DAS ARTES CÊNICAS
COMO EMBASAMENTO PARA A LEITURA DE FILOSOFIA NO ENSINO
MÉDIO.
LUIZ ROBERTO ZANOTTI (UFPR).
Resumo
Este estudo tem como objetivo apresentar os resultados obtidos a partir de um
olhar investigativo sobre a “falta de interesse” na leitura de filosofia por parte dos
alunos de uma escola de ensino médio da rede estadual pública do Paraná. O
principal resultado obtido na investigação, foi o fato de que os alunos, acostumados
a lerem uma literatura eminentemente “didática”, tinham sérios problemas de
interpretação ao se depararem com a leitura filosófica; que com as devidas
reservas, pode ser aproximada ao conceito de “literatura aberta” de Wolfgang Iser
(1999), uma literatura na qual o leitor é convidado a colocar a serviço da
interpretação, todo um acervo que envolve leituras passadas, autores, gênero,
estruturas literárias, ou seja, tudo aquilo que leu, rearranjando as informações para
interpretar. Dessa forma, cientes que diferentemente da alfabetização, a formação
do leitor é uma atividade que nunca acaba e que − como um leitor pode ter prazer
naquilo que não se conhece? − decidimos pela estratégia de apresentar para os
alunos um vídeo do espetáculo teatral Espantalhos − que trata sobre o trajeto de
um espantalho até atingir a liberdade −, para servir como “um pequeno acervo”
(embasamento) para a leitura do texto sobre “Sartre e a liberdade” presente no
livro Fundamentos da Filosofia, de Gilberto Cotrin. Os resultados, de uma forma
geral foram muito interessantes, com os alunos, após assistirem o vídeo, terem
preparado (lido) o texto, o que pode ser verificado pelo alto grau de participação,
seja através da discussão do tema, seja pela elaboração de redações, que
trouxeram pensamentos bem condizentes com a filosofia existencialista de Sartre,
tais como: “Às vezes achamos que somos livres, mas como não sabemos realmente
o que é ser livre, acabamos nos contentando com a situação sem tentar modificá–
la”.
Palavras-chave:
Escola da Ponte, Filosofia, Teatro.
O sábio passa em seu andor
Eu andorinha
Luiz Zanotti
Introdução
Este estudo tem como objetivo apresentar o diagnóstico do problema com a leitura
de textos filosóficos no ensino médio e um possível caminho para a sua solução
através do uso das artes cênicas como embasamento e incentivo para esta leitura.
A primeira parte tem como objetivo apresentar os resultados de um olhar
investigativo lançado no processo de ensino e aprendizagem de filosofia numa
escola pública de ensino. A leitura foi trabalhada como um objeto a partir de suas
implicações epistemológicas e da relação com outras áreas do conhecimento, tais
como, o processo de escolarização, a relação ensino e aprendizagem, os processos
de organização e sistematização da ação pedagógica, gestão escolar, psicologia da
educação, a distribuição espacial, etc.
Na segunda parte foi elaborado um planejamento para uma série de aulas a
respeito do tema "Sartre e a Liberdade", assunto presente no currículo da disciplina
de filosofia, levando em conta os resultados obtidos na investigação. Dessa forma,
a partir do diagnóstico realizado utilizamos alguns conceitos de leitura presentes na
obra de Wolfgang Iser (1979) buscando uma forma de corrigir alguns aspectos que
consideramos como deficiências em nossa observação a respeito do incentivo à
leitura.
Finalmente, apresentamos uma breve conclusão, que obviamente tem apenas um
caráter informativo, sobre os resultados obtidos na utilização destes conceitos de
leitura utilizados.
1. Investigação pedagógica
1.1. Sobre a Instituição
A Instituição de ensino analisada é uma das mais antigas da capital paranaense,
chegando a ser considerada uma escola modelo no ensino médio e
profissionalizante. O seu corpo discente é constituído de seis mil alunos divididos
em três períodos e o seu corpo docente é constituído por cerca de duzentos
professores, em sua maioria, licenciado nas mais diversas disciplinas, mas
possuindo também alguns mestres e doutores.
O ingresso para a 1ª série do Ensino Médio é feito através de um teste
classificatório, de acordo com o número de vagas disponíveis e análise curricular
para os demais, o que garante um bom e homogêneo nível estudantil dos alunos.
A escola possui uma biblioteca muito moderna e bem equipada, que elabora
projetos de incentivo a escrita literária e também oferece aos seus alunos e à
comunidade atividades em diversas áreas tais como artes, línguas, esportes, etc.
Na parte de ensino o colégio promove simpósios de capacitação para seus
professores, constituídos como um espaço de encontro de caráter presencial com
os seguintes objetivos:
- a criação de condições para a atualização de conhecimentos e sistematização das
discussões sobre a prática docente, mediante a interação dos agentes desse
conhecimento: palestrantes, mediadores e professores, com vistas a melhoria na
qualidade da educação;
- o aprofundamento da discussão sobre as diretrizes curriculares e propostas
pedagógicas de cada nível, modalidade e/ou área do conhecimento, e;
- a sistematização dos conhecimentos decorrentes das discussões realizadas, como
forma de proporcionar em toda a rede educacional a possibilidade de leitura e de
re-discussão da produção dos simpósios na instância escolar.
1.2. Sobre o ensino e leitura de Filosofia
Em nosso trabalho investigativo, para nos aproximarmos do cotidiano da escola, no
intuito de recolher informações para futuramente organizá-las e interpretá-las, nós
assistimos a uma série de aulas de Filosofia para uma turma da segunda série do
ensino médio constituída de trinta e cinco alunos. O conteúdo da série de aulas
versava sobre a filosofia política de Maquiavel, baseada no livro Fundamentos da
filosofia, de Gilberto Cotrin (2000).
Na primeira aula desta série, o professor, logo após a chamada, argüiu a turma
sobre o que eles achavam sobre política; várias respostas foram dadas dentro do
contexto da época, fazendo relações principalmente com a corrupção.
Quase no final da aula, o professor anotou os dados biográficos do filósofo no
quadro negro, o situou em seu tempo e numa atitude de incentivo à leitura e
reflexão colocou três questões para que os alunos as preparassem para a próxima
aula, a saber:
1. Qual a relação entre ética e política para Maquiavel?
2. Quais são as principais razões da existência do Estado?
3. O que significa autonomia política?
Na segunda aula da série, depois do ritual da chamada, o professor escreveu
novamente as questões no quadro negro, argüindo os alunos a respeito das
mesmas, obtendo uma participação muito insignificante, com os alunos - na
maioria das vezes - aguardando a resposta por parte do professor.
A pouca participação dos alunos foi totalmente contrária às minhas expectativas,
pois havia sido relatado por professores de outras disciplinas que esses estudantes
"modelo" não só tinham um bom nível de interação nas aulas, como eram afeitos
ao hábito de leitura dada a imensa atividade cultural dos mesmos que organizavam
vários eventos tais como a feira do livro usado, gibi em ação, feira do artesanato,
concurso de fotos etc. Desta forma, ficou a dúvida sobre qual o motivo desses
estudantes com um excelente nível intelectual apresentarem dificuldade em se
interessar pelo tema, apesar de todo esforço de motivação efetuado pelo professor.
1.3. Diagnóstico
Esta falta de motivação pela leitura e aprendizagem de Filosofia numa escola tão
bem estruturada e com um nível de informação surpreendente tanto dos alunos,
quanto dos professores, fez cair por terra o meu "pré-conceito" de que a situação
do ensino estava deplorável devido a falta de motivação ocasionada por deficiências
tais como: salas cheias, professores com baixos salários, pouca qualificação e
pesadas cargas horárias, laboratórios e bibliotecas defasados, e em muitos
lugares, também a violência.
Assim, ao buscar uma possível causa para esta falta de motivação, o problema me
pareceu estar relacionado à necessidade de uma maior reflexão para a leitura da
Filosofia pelos alunos, mais acostumados pelo que eu chamo de uma leitura
instrumental, ou seja, à leitura com objetivos de preparar para o vestibular ou
como a produtora de uma força de trabalho.
Esta leitura instrumental faz com que os alunos sejam direcionados para decorar
uma série de regras, fatos e equações, perdendo a possibilidade de tornar a
educação mais reflexiva, de modo a possibilitar a transmissão aos jovens de
saberes estratégicos voltados ao desenvolvimento intelectual, e não a uma simples
utilidade imediata.
Desta forma, o problema que foi colocado por esta investigação inicial é "por que os
alunos não criam interesse pelo estudo da filosofia" e "como" cativar os alunos a
"querer aprender", ou seja, evitar aquilo que Nietzsche (1999) em "Schopenhauer
como educador" define como o ensino da filosofia que simplesmente apresenta um
"sem número" de filósofos e suas teorias, num vôo panorâmico que só serve para
desencorajar os jovens a ter opiniões, os fazendo participar de um coro de júbilo
por chegarem esplendidamente tão longe e por terem aprendido a odiar a filosofia
- uma vez que as provas lhes trazem as idéias mais malucas ao lados das mais
difíceis de serem captadas. A crítica à filosofia devia ser se é possível viver segundo
ela, numa filosofia da vida e não uma crítica de palavras com palavras, com seus
vários sistemas e suas críticas guardados nas cabeças destes intoleráveis filósofos.
Seguindo o pensamento de Nietszche, ao acompanhar o ensino de filosofia nesta
escola, me pareceu que a sua função é somente, como já descrevemos, preparar
para uma prova de filosofia do vestibular, sendo que, assim que o aluno passa ou,
como diz Nietzsche, escapa da mesma, o jovem se vê aliviado de não ser filosofo e
sim cristão e cidadão do Estado, como se a função deste ensino fosse ao invés de
conduzir, afastar o cidadão da filosofia.
2. Discussão do motivo do desinteresse ("por que?") e de uma possível
caminho (como?).
2.1. Discussão do "por que?" a partir de alguns elementos da teoria dos
efeitos de Iser
A teoria dos efeitos de Wolfgang Iser (1979) se apresentou desde o início, como
uma possibilidade de nos apontar para uma possível caminho de motivação dos
alunos para a leitura e o aprendizado de filosofia. Iser, muito menos que buscar a
formulação de um método, está preocupado com a compreensão teórica do
processo de leitura no que diz respeito à descrição dos conceitos relativos aos
fenômenos perceptivos pelos quais passa o leitor.
Dessa forma, para melhor entendimento da teoria dos efeitos, se faz necessário
que façamos um retrospecto sobre o panorama filosófico no qual a teoria de Iser se
insere. A filosofia contemporânea tratou de por fim nessa busca de um sentido
oculto ao rejeitar o princípio platônico da dualidade essência-aparência, o que
ocasionou a impossibilidade de se obter um sentido único para um determinado
objeto. Esse princípio que teve vigência através de toda filosofia moderna, da qual,
os principais pilares são Descartes, Kant e Hegel, em nenhum momento teve essa
relação fundamental apoiada na razão (sujeito-objeto) contestada.
A partir de Nietzsche, ocorre uma mudança radical: cessa a crítica imanente da
razão, no âmbito da modernidade, e inicia-se uma crítica externa à razão, dirigida
contra a razão, e que contesta a própria modernidade e seus pressupostos. A crítica
da modernidade e da razão ocidental prossegue com Heidegger, que vai atribuir um
estatuto especial à filosofia que busca o "Ser em suas origens", e dissolvendo de
vez essa relação sujeito-objeto.
Tais rupturas trouxeram sérias modificações na forma de se pensar o sujeito desde
o Iluminismo: O homem moderno, que até aqui era visto como um sujeito
unificado, com uma ancoragem estável no mundo social, tem a sua identidade em
colapso através do deslocamento ou "descentração" do sujeito, acarretando uma
perda de um "sentido de si" estável, trazendo conseqüências não só na área da
Ciência, mas também nas manifestações artísticas (HALL, 2004, p. 07-46).
Essa fragmentação traz junto consigo a idéia de que a realidade percebida está
longe de ser homogênea, e que não é sem razão que o pensamento pós-moderno
tenha abandonado as categorias da totalidade e da essência, o que significa que
tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada do conhecimento são os dados
empíricos; em outras palavras, não existe uma verdade atrás de uma aparência, o
que existe é só a aparência.
Segundo Gilvan Fogel (2003),
Afinal, qual o ser, a essência da mesa, da laranja? [...] Atrás das
coisas? Além delas? [...] Bem, se a essência de uma coisa está
"atrás" ou "além" dela, então a coisa não é mais coisa! Eu corto a
laranja, desfaço-a em gomos e não encontro o seu dentro, o seu
mais profundo. (p.18-19)
O que Fogel questiona é que, ao se rachar uma mesa, encontra-se serragem,
madeira, pedaço de mesa, tudo que já não é mais mesa, ou seja, encontra-se
somente superfície: onde é que está a essência, o miolo, o caroço profundo da
mesa? O ser das coisas está na sua aparência, no seu modo de ser possível.
Ainda, voltando para o exemplo da laranja, podemos notar a sua grande gama de
sentidos pois se, para um botânico, ela é seu nome científico, para o sitiante, é
meio de sobrevivência, para os garotos, pode ser uma bola de futebol ou uma arma
se arremessada. A verdade é que a laranja não é tão tranqüilamente laranja, não é
tão uniforme, e sua identificação depende da perspectiva do observador.
Partindo, dessas premissas, e principalmente da fenomenologia, Iser (1996) vai
também dissolver a dualidade essência-aparência, se opondo à uma crítica
hermenêutica inocente que objetiva a obra de arte como representação de uma
totalidade (verdade universal), o que é magnificamente demonstrado através de
sua análise do livro de Henri James, Figure in the carpet.
Assim, Iser vai estudar o ato de leitura a partir destes princípios fenomenológicos,
afirmando que os atos de apreensão do texto se dão na interação entre o texto e o
leitor desprezando os modelos textuais que descrevem apenas um pólo da situação
comunicativa.
Segundo Iser (1999):
... o repertório e as estratégias textuais se limitam a esboçar e préestruturar
o potencial do texto; caberá ao leitor atualizá-lo para
construir o objeto estético. A estrutura do texto e a estrutura do ato
constituem portanto os dois pólos da situação comunicativa; esta se
cumpre à medida que o texto se faz presente no leitor como correlato
da consciência. (p. 9)
A partir desta constatação, a transferência do texto freqüentemente objetivada
como algo produzido somente pelo texto passa também a considerar certas
disposições da consciência, tais como a apreensão e o processamento. Ainda
segundo o autor,
Referindo-se a normas e valores, como por exemplo, o
comportamento social de seus possíveis leitores, o texto estimula os
atos que originam sua compreensão. Se o texto se completa quando
o seu sentido é constituído pelo leitor, ele indica o que deve ser
produzido; em conseqüência, ele próprio não pode ser o resultado.
(ISER, 1999, p. 9)
Com isso, Iser mostra as deficiências das teorias lingüísticas e também as de
procedência marxista que evocam a impressão de que um texto, por assim dizer,
imprime-se automaticamente na consciência de seus leitores, sugerindo uma rua de
mão única do texto para o leitor:
Por esta razão, é preciso descrever o processo da leitura como
interação dinâmica entre texto e leitor. Pois os signos lingüísticos do
texto, suas estruturas, ganham sua finalidade em razão de sua
capacidade de estimular atos, no decorrer dos quais o texto se traduz
para a consciência do leitor. (Idem, p. 10)
Dessa forma, os atos estimulados pelo texto saem do controle total do texto
originando a criatividade (reflexão) da recepção, fazendo com que o autor e o leitor
participem de um jogo que sequer se iniciaria se o texto pretendesse ser algo mais
do que uma regra do jogo.
Para tornar essa estrutura intersubjetiva entre a partitura do texto e a capacidade
dos leitores passível de descrição, Iser vai se apoiar, como vimos, na
fenomenologia da leitura para esclarecer estes atos de apreensão pelos quais o
texto se traduz para a consciência do leitor, e aqui parece estar o "Por que?" de
nossa questão. Segundo o autor,
... a leitura só se torna um prazer no momento em que nossa
produtividade entra em jogo, ou seja, quando os textos nos oferecem
a possibilidade de exercer as nossas capacidades. Sem duvida há
limites de tolerância para essa produtividade; eles são ultrapassados
quando o autor nos diz tudo claramente ou quando está sendo dito
ameaça dissolver-se e tornar-se difuso; neste caso, o tédio e a fadiga
representam situações-limite, indicando em principio o fim de nossa
participação. (Idem)
Esta explicação nos mostra a importância do aluno ao se defrontar com o texto
filosófico, um texto geralmente aberto a uma série de interpretações - como
podemos confirmar nos textos platônicos -, seja munido de ferramentas que o
possibilitem a "entrar" no jogo, sem que este texto acabe se tornando uma ameaça
e portanto algo a não ser "desejado", obtendo um mínimo de prazer e coerência,
evitando ainda o que Humberto Eco chama de super-interpretação. Segundo Eco
(1993),
Interpretar um texto significa explicar por que essas palavras podem
fazer várias coisas (e não outras) através do modo pelo qual são
interpretadas. Mas se Jack, o Estripador, nos dissesse que fez o que
fez baseado em sua interpretação do Evangelho segundo São Lucas,
suspeito que muitos críticos voltados para o leitor se inclinariam a
pensar que ele havia lido São Lucas de uma forma despropositada.
(p. 28)
A estrutura textual é composta principalmente pelo repertório, pelas estratégias e
pela realização. O repertório é constituído dos sistemas de sentido extra-literários -
ou de sua negação - e também da literatura do passado. Assim, o repertório diz
respeito às variadas referências do texto, que se apresentam sob diferentes
formas: alusões literárias, normas históricas e sociais, dados do contexto cultural,
enfim, todo e qualquer tipo de indicador da "realidade extra-textual" que é
desprovido da validade que possuia no contexto de referência. Estas escolhas não
são arbitrárias, pois a seleção de determinados sistemas de sentido deve ter um
motivo para constituir o repertório de um texto ficcional. Sendo assim, o repertório
tem um caráter de informação.
As estratégias dizem respeito à organização do material interno que constitui o
texto. Elas advêm do trabalho do autor no texto (consciente ou inconscientemente)
através da escolha do gênero e suas combinações, das perspectivas textuais (do
narrador, do leitor implícito, das personagens, do enredo), da utilização de
metáforas, alegorias, aforismos, quebras textuais, neologismos, etc. que vão
estabelecer as bases para que o leitor passe pelo efeito (sentido) e conseqüente
resposta estética.
A realização se encontra no papel do leitor e consiste na projeção da soma de uma
estrutura do texto e de uma estrutura do ato de leitura. A relação estabelecida
entre sujeito (leitor) e objeto (discurso ficcional) fundamenta o conceito de leitor
implícito: "A concepção do leitor implícito descreve, portanto, um processo de
transferência pelo qual as estruturas do texto se traduzem nas experiências do
leitor através dos atos de imaginação" (Iser, 1996, p.79).
Um texto precisa representar alguma coisa, e a significação do que é representado
existe independentemente de qualquer recepção singular. Por outro lado, pode-se
entender que essa significação, que é aparentemente independente de qualquer
realização do texto, é em si mesma, uma experiência individual de leitura que tem
sido identificada com o texto em si. Assim, o leitor implícito é uma categoria que
proporciona o quadro de referências para a diversidade de atualizações históricas e
individuais do texto, a fim de que se possa analisar sua peculiaridade.
2.2. Discussão do "como" proceder na aula sobre Sartre e a Liberdade
Uma vez, que com alguma segurança, podemos usar o "por que" sugerido pela
teoria de Iser (que nos trouxe como principal resultado a constatação de que os
alunos, sem possuírem um repertório adequado acabavam por se defrontar com
sérios problemas de motivação - desejo - quando eram convidados a ler e
interpretar textos filosóficos), assumimos o "como" através da idéia de uma
suplementação de repertório que pudesse auxiliar os estudantes na leitura e
interpretação do texto sobre Sartre e a Liberdade.
Esta suplementação se deu através da disponibilização de material que pudesse ser
assimilado pelos alunos de uma maneira natural, o que nos levou a apresentar o
vídeo de uma peça musical que conta a estória de um espantalho que após ser
retirado de um milharal e colocado como parte da decoração de uma vitrine
juntamente a outros espantalhos fabricados a partir dele como modelo, vai tentar
de todas as formas voltar novamente ao campo, trazendo a tema "liberdade".
A idéia era motivar os alunos a responder a respeito do tema "liberdade" de uma
forma espontânea, porém tendo como pano de fundo a liberdade sonhada pelo
Espantalho. Ao utilizarmos este recurso, buscamos trazer a filosofia para uma base
da realidade - alguém buscando pela liberdade - sem nos afastarmos da abstração
presente numa imagem do espantalho, ou seja, homem como um simulacro. Após
a exibição do vídeo foi solicitado para que os alunos procurassem ler o texto sobre
Sartre e a liberdade usando como "pano de fundo" a peça assistida.
A aula seguinte começou com os alunos se agrupando para escrever uma pequena
redação a respeito da relação entre a peça "Espantalhos" e a leitura de Sartre. O
resultado se mostrou bastante satisfatório, mostrando que os alunos, de uma forma
geral, conseguiram elaborar uma excelente reflexão sobre o vídeo, o que pode ser
percebido por frase como: "Às vezes achamos que somos livres, mas como não
sabemos realmente o que é ser livre, acabamos nos contentando com a situação
sem tentar modificá-la"; "Os espantalhos fabricados não se incomodavam em
estarem presos, pois eles não conheciam a liberdade", ou ainda: "O espantalho
Visconde apesar de estar encarcerado na vitrine não se acomodou com a situação
até conseguir de novo a liberdade".
Esta última afirmação sobre a busca da liberdade pelo espantalho demonstra
claramente a reflexão a respeito de certos conceitos de Sartre contidos no texto,
tais como o fato de sermos "condenados à liberdade"; ou seja, não há limite para
nossa liberdade, exceto o de que "não somos livres para deixarmos de sermos
livres".
Para descrever a consciência desta liberdade, Sartre usa o termo "angústia" no
sentido de que nós estamos livres porque não podemos confiar em um Deus para
justificar nossa ação ou para nos dizer o quê e quem nós somos. Esta angústia
como consciência da liberdade de escolha, também foi percebida pelos alunos em
geral que notaram a tristeza (que podemos comparar com a angústia) de Visconde
ao ser retirado do campo e não saber o que deveria fazer para alcançar a sonhada
liberdade.
Enfim, resumindo as várias perspectivas exploradas pelos alunos chegamos juntos
a uma conclusão, mesmo que parcial, de que os atos de cada um definem a vida, o
homem se compromete, desenha seu próprio retrato e não há mais nada senão
esse retrato. Nossas ilusões e imaginações a nosso respeito, sobre o que
poderíamos ter sido, são decepções auto-infligidas. Uma pessoa "corajosa" é
simplesmente alguém que geralmente age com bravura. Cada ato contribui para
nos definir como somos, e em qualquer momento podemos começar a agir de modo
diferente e desenhar um retrato diferente de nós mesmos. Há sempre uma
possibilidade de mudança, de começar a fazer um tipo diferente de escolha, e o
exemplo disso se mostra claramente através do espantalho Visconde que escolheu
a sua volta ao campo.
3. Conclusão
Desta forma, os resultados obtidos a partir do olhar investigativo sobre a "falta de
interesse" na leitura de Filosofia nos levou a tomar algumas atitudes dentro de uma
perspectiva de que a formação do leitor, diferentemente da alfabetização, é uma
atividade que nunca acaba, perguntando-nos como é que um leitor pode ter prazer
naquilo que não consegue reconhecer. Desse modo, a experiência comunicativa
através da obra de arte torna-se real para o leitor que, diante de expectativas não
atendidas, passa a compreender que uma nova situação está colocada.
A estratégia adotada de apresentar para os alunos o vídeo da peça como apoio à
formação de repertório repercutiu num altíssimo grau de participação, seja através
da discussão do tema, seja pela elaboração de redações, que trouxeram
pensamentos bem condizentes com a filosofia existencialista de Sartre, e porque
não dizer com o próprio exercício do magistério: "Às vezes achamos que somos
livres, mas como não sabemos realmente o que é ser livre, acabamos nos
contentando com a situação sem tentar modificá-la".
4. Bibliografia
BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São
Paulo: Editora 34, 2002.
COTRIN, Gilberto. Fundamentos da filosofia. São Paulo: Saraiva, 2000.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
ECO, Humberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes,
1993.
FOGEL, Gilvan. Conhecer é criar: Um ensaio a partir de F. Nietzsche. São Paulo:
Discurso Editorial, 2003.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. São Paulo: DPA, 2004.
INGARDEN, Roman. A obra de arte literária. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1973.
ISER, Wolfgang. "A Interação do Texto com o Leitor". In. : LIMA, Luiz Costa (org.).
A literatura e o leitor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
____ O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo, Ed. 34, 1996.
____O ato da leitura: uma teoria do efeito estético - vol.2. São Paulo: Ed. 34,
1999.
NIETZSCHE, Friedrich. Coleção "Os Pensadores". São Paulo: Editora Nova Cultural,
1999.
ZANOTTI, Luiz. Espantalhos. Disponível em
http://recantodasletras.uol.com.br/roteirosdeteatro/1661223 em 14 de julho de
2009.

Religião e capitalismo

Religião e capitalismo

O objetivo deste trabalho é fazer uma breve análise do conceito “Espírito do Capitalismo” apresentado por Marx Weber em seu livro
Weber inicia com uma descrição provisória do que é o espírito do capitalismo, a partir de sentenças cravadas por Benjamin Franklin, onde ele afirma que: tempo é dinheiro, credito é dinheiro, a destruição de uma coroa (dinheiro da época), destrói tudo que ela poderia ter produzido, um grande numero de libras (dinheiro com maior valor); ou ainda, o bom pagador é o dono da bolsa alheia.
Esta filosofia da avareza aparece como o ideal de um homem honesto.O capital é tomado como um fim em si mesmo, dentro não de uma técnica de vida, e sim uma ética peculiar, uma máxima orientadora do modo de se relacionar.
Como podemos já notar nesta primeira passagem, Weber a explicação sociológica só pode captar determinados elementos da realidade, que são condicionados pela cultura no qual o sociólogo está inserido, para isto ele usa o conceito de “tipo ideal”que é definido como a acentuação unilateral de um ou vários pontos de vista se formando um quadro homogêneo de pensamento.
Dentro deste método, Weber vai tratar este “espírito” como uma ética de vida, um modo de ver e encarar esta existência.Ser capitalista, antes de tudo, não é exatamente ser uma pessoa avara, mas ter uma vida disciplinada de tal forma que as ações praticadas, sempre revertam em lucro.
É importante ressaltar que para os calvinistas, o cristão está no mundo para glorificar Deus, e deve faze-lo trabalhando, ou seja, o cristão que estiver reservado para ser salvo vai levar uma vida disciplinada e cristã: o resultado só pode ser o enriquecimento de seus bens materiais.
Weber vai tratar do dinheiro, “já reificado”, numa perspectiva próxima ao que Proudh pensa ao propor: que o dinheiro está exatamente na base do grande mal da organização social, e desta forma motivando o intercambio desigual entre capital e trabalho, juros extorsivos e crises em geral.É importante, no entanto, lembrar assim como Marx afirma: este “mal” está na forma social baseada no valor de troca, que dá o “substrato concreto” para o aparecimento do dinheiro.
Esta perversa tendência deste “fetiche monetário” também foi percebida por Bortkiewicz: o dinheiro é o responsável por todas contradições e antíteses imagináveis que recaem sobre o capitalismo, mas antes de ser uma artificiosa construção metafísica defendida por ele, ou o conceito de “espírito” de Weber , ela representa as condições reais de existência e as tendências evolutivas da ordem social burguesa, onde em uma sociedade de produtores privados e atomizados, o trabalho do individuo não é diretamente social, mas deve provar-se por sua própria negação de seu caráter original.Neste modo de produção inexiste a planificação social coerente submetendo-se tudo à cega ação das forças do mercado.”O movimento geral de sua ordem é a desordem”, e ainda,“O fetiche do dinheiro é apenas o enigma agora visível e deslumbrante do fetiche da mercadoria”.(RR,112)
Ou como, diz Marx nos Grundisse: “A essência do dinheiro é, em primeiro lugar (...), a atividade mediadora ou o movimento, o ato humano social mediante o qual se complementam reciprocamente os produtos dos homens, que é alienado e se converte em atributo de um objeto material exterior ao homem, o dinheiro. Quando o próprio homem aliena esta atividade mediadora, passa a agir como homem que se perdeu, se desumanizou; a relação dos objetos, a operação humana com eles, converte-se na operação de um ente exterior ao homem e superior a ele. (...) Sua escravidão atinge um ápice. Esse mediador converte-se então no verdadeiro deus, é a potencia real que domina tudo. Seu culto converte-se em um fim em si.Separados desse mediador, os objetos perdem o valor.Ou seja, só possuem valor na medida em que representam;originariamente, parecia que ele(o mediador) só tinha valor na medida que o representava.”(RR,117)
A sociedade privada deve desdobrar-se em direção do dinheiro porque o homem na sociedade necessita intercambiar bens privados avançando em direção do valor.Isto se deve pelo fato que o movimento que intermedeia esta troca, não é uma relação humana, e sim uma relação abstrata entre propriedades privadas determinada pelo valor, cuja concretização na realidade é dada pelo dinheiro, com o objeto perdendo a característica de “pessoal”, manifestando-se a dominação do objeto (e, portanto, do dinheiro) sobre o homem.O que era dominação de uma pessoa sobre outra pessoa (senhor e escravo), passou a ser o domínio universal da coisa sobre os homens, do produto sobre o produtor.Ou seja, no valor já se encontra a alienação da propriedade privada, o dinheiro é a objetivação dessa alienação. (RR,118)
É importante ressaltar que o dinheiro se torna independente, tanto em relação à sociedade como ao individuo(...)passando a representar o valor de todas as coisas, pessoas e relações sociais.(RR,135)Isto resulta num individuo aparentemente desconectado do restante da sociedade em busca e na idolatria do Deus-Dinheiro, tendo a educação, como veremos adiante, uma fabula ou uma cenoura em frente do nariz para manter o trabalhador assalariado em seu sonho de consumo e ascensão social.
Otto Bauer firma que a “falsa racionalização é uma racionalização que, embora diminua os custos de produção de uma empresa isolada, aumenta os custos sociais de produção, de modo que enriquece o individuo e empobrece a sociedade. (RR,435)
Este fetiche do dinheiro, aliado à “ética” de Franklin, está ligado à obtenção de mais e mais dinheiro, combinada com o afastamento de todo gozo espontâneo da vida, como veremos mais adiante, sendo destituída de qualquer caráter eudemonista ou mesmo hedonista, com um sintomático afastamento do prazer e da felicidade.É uma finalidade em si, acima até à felicidade ou utilidade do individuo.Algo transcendental e puramente irracional com o homem dominado pela produção de dinheiro e pelo trabalho, ao invés de ser o meio para satisfazer as suas necessidades materiais.
Esta inversão de uma relação natural, tão irracional num primeiro momento, é evidente um princípio orientador do capitalismo e estranha aos povos fora deste regime, bastando lembrar que na França de Luiz XIV, o trabalho não era visto com bons olhos.
O trabalho como uma idéia peculiar do dever profissional, tão familiar nos nossos dias, na realidade não é tão evidente e faz parte da ética social da cultura capitalista, o próprio Marx critica esta ética através da frase presente no “Gothaer programmetwurf”, “O trabalho é a fonte de toda riqueza e de toda cultura”, afirmando que: “os burgueses têm boas razões para atribuir ao trabalho uma força criadora sobrenatural; porque precisamente da natureza do trabalho resulta que o individuo que não dispõe de outra propriedade a não ser sua força de trabalho, deve em todos os estados sociais e culturais permanecer escravo de outros indivíduos que se tornaram proprietários das condições objetivas de trabalho”.(MB,54)
A empresa dos dias atuais é um imenso cosmos onde o individuo ira viver, obrigando-o, na medida que é envolvido pelas relações de mercado, a se conformar com as regras de ação capitalista.O trabalhador que não se adaptar a estas regras será lançado à rua sem trabalho, uma vez que os meios de produção se encontram nas mãos dos capitalistas.
Weber acredita que em certas regiões o espírito do capitalismo estava presente antes mesmo do desenvolvimento capitalista.Cita o caso da Nova Inglaterra, que apesar de fundada por pregadores e formados em curso superior tiveram um desenvolvimento capitalista mais acirrado que os estados do Sul fundados por grandes capitalistas.Este menor desenvolvimento, no entanto, pode ter outras raízes como, por exemplo, a falta de “consciência” dos trabalhadores.
Um dos principais obstáculos ao desenvolvimento capitalista é esta “falta de consciência dos trabalhadores”, ou seja, o capitalismo não pode utilizar-se do trabalho daqueles que praticam a doutrina do livre arbítrio Este obstáculo esta fortemente baseado na tradição, onde esta procura pelos lucros num primeiro momento, não foi encorajada, mas sim colocada como um fato infelizmente inevitável. Este parece ser o caso da constituição do capitalismo na Itália, onde se estabeleceu uma complexa relação entre cidade e campo, com a não integração da região meridional camponesa ao processo de modernização econômica e política acentuando as distancias econômicas e culturais existentes no momento da unificação(AS,19)
Para se entender a resistência a este novo sistema dentro da tradição, Weber apresenta o sistema de pagamento por unidades de produção na agricultura que é quase adotado universalmente.Ele demonstra que a implementação de uma forma de pagamento de acordo com a eficiência registrou uma diminuição na produção, porque a oportunidade de ganhar mais era menos atrativa que a possibilidade de trabalhar menos.
O tradicionalismo esta presente no fato que o homem por natureza não quer ganhar cada vez mais, mas sim viver como estava acostumado e ganhar o necessário para este fim.Ainda hoje quanto mais atrasada estiver a economia, mais dificuldade é encontrada para lidar com as forças de trabalho.
A partir desta constatação, o sistema tentou a política oposta forçando o trabalhador trabalhar mais para receber a mesma soma que recebia antes, por séculos foi um artigo de fé que os baixos salários eram produtivos.
Esta política esta atrelada à existência de mão de obra farta, que é claramente uma necessidade para o desenvolvimento do capitalismo.
Esta afirmação de Weber parece estar concernente ao que Marx escreve na “Teoria do trabalho assalariado”, onde esta esboçada como o salário desenvolvido sobre o tempo de trabalho como padrão imanente de valor de troca, ou ainda a quantidade de valor que o trabalhador recebe no intercambio com o capital se mede pelo trabalho objetivado para reproduzir sua capacidade de trabalho, ou seja, conservar fisicamente o trabalhador e sua descendência.(mão de obra farta).
O modo como se determina a quantia que o trabalhador recebe como salário, que como vimos no exemplo do salário na Agricultura, “depende tão pouco da relação geral que não podemos compreendê-la a partir dela”.O “movimento geral do salário” depende das leis que regem o mercado(de uma forma diferente do mercado de mercadorias), e cuja investigação exige uma teoria especial de trabalho assalariado.(RR61)
Isto ocorre, uma vez que no mundo real, o capital se esforça para incrementar a sua própria valorização, de um lado mediante a redução do salário para um nível abaixo do valor da força de trabalho, pelo prolongamento acima do normal da jornada de trabalho, pratica do trabalho noturno e a incorporação de mulheres e crianças à população trabalhadora.Mas Marx aponta ainda nos “Grundisse”, que é necessário entender essas contradições a partir de relações gerais, e não trapaças feitas por este ou aquele capitalista.(RR,62)
Weber continua a sua explanação: É importante que durante o turno de trabalho, o trabalhador não precise se preocupar com o ordenado, este trabalho deve ser executado como um fim absoluto por si mesmo, como uma “vocação”.Tal atitude, como já vimos, não é absolutamente um produto da natureza.
Esta “vocação” não pode ser provocada por salários altos ou baixos, e sim por um longo e árduo processo de educação.O conceito de vocação dada por um caráter ascético que é dado pela disciplina e rigor com que o trabalhador deveria se dedicar ao trabalho se encontra presente na concepção de vocação dada por Lutero; quanto mais as pessoas aceirarem suas tarefas profissionais como um chamado de Deus (vocação) e as cumprissem com disciplina, mais aptas estariam para se salvas.
Hoje, em todos os paises industrializados, pode-se com relativa facilidade recrutar esta força de trabalho, mas no passado este era um problema sempre de difícil solução.
Esta dificuldade na contratação de trabalhadores fica ainda mais clara, se levarmos em conta, que é difícil acreditar que no surgimento do capitalismo existisse de fato uma grande diferença entre a habilidade pessoal e os segredos comerciais do artesão e a moderna técnica cientifica e objetiva.
A atual facilidade de recrutamento de trabalhadores parece estar justificada, tanto pelo excedente de mão de obra, quanto da educação estabelecida.Para tal, nos parece esclarecedor o texto de Walter Benjamim a respeito da vida dos estudantes.
Ele inicia o texto dizendo que a forma de ver historia é parcial, pois vemos através do viés do progresso, e que os elementos do estado final afloram a superfície enquanto tendência amorfa de progresso, mas engastados no presente como criações e os pensamentos mais ameaçados, difamados e desprezados.Trazer este passado de uma forma pura e visível é a tarefa histórica.
Este estado não pode, contudo ser parafraseado com a descrição pragmática de pormenores (instituições, costumes, etc), descrição da qual ele antes se furta, mas só pode ser apreendido em sua estrutura metafísica, assim como o reino messiânico ou a idéia da revolução francesa.(BR31)
A visão dos estudantes que a ciência é uma escola profissionalizante, uma vez que a “ciência não tem nada a ver com a vida”, faz com que eles esperem que ela molde a vida de quem a segue, numa clara alusão ao fato de que a Universidade como reduto de ciência em contraposição a “fundar uma comunidade de pesquisadores em lugar de uma corporação de funcionários públicos diplomados”. (33)
As normas são ditadas pelo ministro da Cultura que é nomeado pelo soberano e não pela Universidade, numa correspondência semivelada da burocracia acadêmica com os órgãos estatais.(34)
Esta posição de Benjamim tem total concordância com Horkheimer, quando ele relata que boa parte do trabalho realizado nas universidades anglo - saxônias, oferecem certamente uma imagem que parece estar mais próxima exteriormente da vida em geral dentro do modo de produção industrial do que a formulação de princípios abstratos e ponderações sobre conceitos fundamentais em gabinete, como foi característico de uma parte da sociologia alemã.(PH,127)
Desta forma, aquele espírito tolstoiniano que escancarou o abismo descomunal entre existência burguesa e proletária, o conceito de que servir os pobres é uma tarefa da humanidade e não atividade secundaria do estudante, (...) aquele espírito que nasceu das idéias dos mais profundos anarquistas e em comunidades monásticas cristãs, o espírito social que nunca precisou de tentativas infantis de empatia com o trabalhador, não vicejou em comunidades estudantis.Isto porque nas questões essenciais, o “estudante livre” não acrescenta nada em relação às corporações, e a sua eficácia é ainda mais perigosa porque a sua tendência burguesa, mesquinha e indisciplinada, reivindica para si, na vida universitária, a reputação de combatente e libertador.(38)
A falsificação do espírito criador em espírito profissional, que vemos em toda parte, apossou-se da universidade e a isolou da vida intelectual criativa e não enquadrada no funcionalismo publico.(39)
Para Benjamim, estes estudantes deveriam envolver a universidade num espaço de uma permanente revolução intelectual, com questionamentos mais abrangentes que as questões cientificas, de maneira mais incerta e inexata, e talvez brotando uma intuição mais profunda.Numa função criativa, convertendo em questões cientificas, através de um posicionamento filosófico, as idéias que antes encontramos mais comumente na arte e na vida social do que na ciência.
No que diz respeito à tecnologia, Weber num afã de defender o seu “espírito do capitalismo” volta a apresentar um Franklin impregnado por este espírito, quando seus negócios de impressão não diferiam muito de qualquer empresa artesanal e para mostrar com esta tecnologia era semelhante entre capitalistas e artesãos, e coloca a tese que “a destruição das ferramentas dos trabalhadores metodistas na Inglaterra ter como objetivo a sua falta de disposição para o trabalho remunerado, ao invés dos alegados motivos religiosos”.
No entanto, Weber esquece que além da tecnologia, existia toda uma ideologia própria da burguesia que existe um anseio otimista pelo novo, representado pelo avanço tecnológico, que Hardmann apresenta em a “Grande Exibição dos Trabalhos da Indústria de Todas as Nações”: Do deslumbrante Palácio de Cristal em Londres (1851) à sublime Torre Eiffel em Paris (1889): entre a transparência do vidro e a maleabilidade do ferro, desvela-se muito mais do que um ensaio de combinação de materiais, a própria exibição universal da civilização burguesa (...). Encontraram-se ali o ideal obsessivo do saber enciclopédico e o não menos conhecido europocentrismo, garbosamente fantasiado de cosmopolitismo liberal e altruísta.(...).Emoções do maquinismo, cruzamento entre fios da razão iluminista e da sensibilidade romântica(...)Alguns souberam tirar dali proveito próprio e, quando isso aconteceu, negócios prosperaram e impérios cresceram.
A seguir, Weber apresenta o hábito, como a principal barreira ao desenvolvimento do capitalismo citando o exemplo da industria alemã, onde as mulheres solteiras, e portanto, com menor grau de responsabilidade têm dificuldade de largar métodos herdados em contraposição de moças com formação religiosa que tem mais facilidade em assimilar novos métodos.A capacidade mental e o sentimento de obrigação são totalmente essenciais para a capacidade de produção.
Estes fatos fornecem uma base mais favorável para a concepção do trabalho como um fim em si.
Esta conexão de adaptabilidade do capitalismo a fatores religiosos pode ter surgido na época de seu desenvolvimento inicial.
Esta conexão entre fatores religiosos e capitalismo parece mais importante que numa primeira analise preliminar, haja visto, a influência da educação católico-jesuítica na política e educação da sociedade italiana conforme analise de Gramsci : A Igreja se beneficiou política e culturalmente em diversos momentos históricos, com o fato de embora os burgueses fossem anticlericais e maçônicos, não conseguiam se opor à ação do clero, e desta forma necessitou do apoio dela.Este pacto resultou na subordinação indireta do Estado a Igreja, com esta passando a executar seu programa clerical pela implantação de uma rede de escolas e jornais, funcionando quase que sob as expensas do Estado, um trabalho de propaganda que para ele salienta ser realizado “contra a civilização laica e liberal, pagas em parte pela organização política desta civilização” (AS38)
A antítese aparece quando o capitalismo procurava avançar e necessitava que os mitos tradicionais inerentes à família e à religião se dissolvessem, em oposição a uma Igreja que também enfrentava conflitos internos entre tendências conservadoras e modernas que tentavam compor “no âmbito religioso, os conflitos emergentes na sociedade moderna”.(AS39)
A experiência com jovens na industria alemã parece bastante análoga ao “conformismo” gerado por esta pratica religiosa do povo da Itália, com as pregações que recomendavam a resignação e exerciam grande influência sobre a vida das crianças e dos jovens, criando um estado de ânimo difícil de combater, porque não tinha bases racionais.
Para Gramsci, os trabalhadores tinham que se opor a este tipo de educação para levar adiante o seu projeto socialista, esta crítica era urgente, uma tarefa que não cabia só as mulheres mas também aos homens, que deveriam participar com suas idéias e princípios, educando os filhos, com base na mais ampla liberdade de consciência.(AS41)
Esta influência ideológica da Igreja se complementava nas escolas católicas, onde se formavam os intelectuais leigos que atuavam nas organizações religiosas e na sociedade civil, mas Gramsci mostra que apesar de tudo, como as contradições permeavam o processo de adaptação da Igreja à sociedade capitalista: se por um lado, esta instituição conseguia recuperar alguns privilégios e ampliar seu poder por meio da difusão ideológica e do ajustamento à idéias e situações modernas, por outro, precisava enfrentar crises internas que ameaçavam a sua estrutura hierárquica e que resultam precisamente deste processo de adaptação.(AS42)
Na verdade a Igreja já havia a muito se afastado dos ideais do cristianismo primitivo e da autenticidade da pratica dos primeiros cristãos.Gramsci mostra através de artigos, que é impossível se formar um católico integral enquanto norma de vida.(AS42)
Desta forma, para Gramsci, a cultura não pode ser tratada abstratamente e para as classes trabalhadoras prepararem a revolução, existe também a necessidade de elaborar uma nova concepção de mundo fundada na re-interpretação da historia para assumir como sua a herança cultural da humanidade; tal ação implicava em romper com os estreitos limites da democracia burguesa que geram a indiferença e o ceticismo, para desenvolver uma nova sensibilidade histórica.”É necessário perder o habito e deixar de conceber a cultura como saber enciclopédico”.(AS44)
Na continuidade, Weber cita Sombart em sua discussão sobre a gênese do capitalismo, que aponta para a “satisfação de necessidades” e “aquisição” como dois princípios orientadores sobre o qual se desenvolveu a historia econômica.
No primeiro caso a obtenção de mercadorias necessárias à satisfação pessoal, e no segundo, uma luta pelo lucro livre dos limites impostos pelas necessidades.
Para isto ele recorre a um exercício de imaginar uma sociedade tradicional, onde a vida do produtor era muito confortável numa rotina, onde os camponeses vendiam os seus tecidos por preços razoavelmente costumeiros, o produtor recrutava os seus clientes de tempos em tempos numa competição de grau de relacionamento relativamente bom, com uma visita diária à taberna para beber com os amigos.
Esta forma de organização é claramente capitalista, com a atividade do empreendedor puramente comercial, o uso do capital de giro no negocio era indispensável e a contabilidade era racional.Temos que considerar, no entanto, que o espírito que animava este empreendedor, um negocio de cunho tradicionalista: o modo de vida tradicional, a taxa do lucro, a quantidade de trabalho, as relações do trabalho e o circulo de clientes, toda esta orientação de negócios de base tradicional se colocava na base da ética deste homem de negocio.
Em determinado momento esta vida de lazer foi convulsionada, um indivíduo qualquer saído de uma destas famílias produtoras, contrata tecelões como empregados, aumenta o grau de supervisão sobre o trabalho, e sai a busca do consumidor final, visitando-os com maior freqüência, ajustando padrões de qualidade às necessidades dos mesmos, e introduzindo os conceitos de “baixo preço” e “grande giro” num processo de racionalização.
Esta visão de Weber se encontra na idéia de tipo ideal, com alguma semelhança com a filosofia neokantiana, onde os estudos de fatos devem ser desprendidos de qualquer juízo de valor e especulação metafísica deveria estar no quarto de “despejo”.
Esta visão é totalmente contestada por Lukács que afirmava poderem as limitações inerentes à cognição humana, ou a barreira intransponível entre estudo cientifico de “fatos” e “juízos de valores” serem vencidas ao voltarmos a filosofia de Hegel, e a aparente irracionalidade da existência não passa de uma doença cultural, sendo simplesmente conseqüência da “reificação”.(GL,60)
Este viés colocado pela ética kantiana, levada como uma máxima pelos neokantistas, onde “o ideal é aquilo que deveria existir mais “não existe”, foi trabalhado por Lukács em “Historia e consciência de classe”, num claro retorno a Hegel derrubando esta barreira intransponível entre o “é” e o “deve ser”.
Esta obra que só foi levada a serio por Marcuse, Adorno e Benjamim quando da Escola de Frankfurt, se colocava contrariamente ao ensaio de Engels a respeito de Feuerbach, trazendo o homem numa totalidade, na qual a sua essência é levada a conformar-se com a sua existência, “ser ai”: O “sujeito-objeto idêntico” realiza-se a si mesmo no processo histórico, ao vencer a alienação imposta aos homens por circunstancias materiais criadas per si, e a revolução proletária constitui (...) a “realização da filosofia”.(GL64)
Um importante fator, que Weber não analisa, neste trabalho, é o Estado, denunciado por Marx como sendo o instrumento da classe dominante e a hierarquização das relações entre burgueses ricos e trabalhadores assalariados, pois muitos destes, na concepção da burguesia, permaneciam em situação de miséria por causa de sua condição “natural” de inferioridade. Esta inferioridade é muito bem explicada por Eric Hobsbawm : a burguesia estava dividida em relação à natureza daquela inferioridade das classes baixas,inferioridade sobre a qual, no entanto não havia desacordo.Como o sucesso era devido ao mérito pessoal, o fracasso era claramente devido à falta de mérito. A ética tradicional burguesa, puritana ou laica, havia determinado que isso era devido mais à fraqueza moral ou espiritual do que à falta de inteligência, pois estava evidente que cérebro não era uma necessidade indispensável no mundo dos negócios.(num parecer de certa forma semelhante ao pensamento de Franklin) (...) e isto implicava não apenas inferioridade, mas idealmente uma inferioridade aceita nas relações entre homens e mulheres. Os trabalhadores, como as mulheres, deveriam ser leais e satisfeitos. Se não o fossem, era devido àquela figura crucial do universo social da burguesia, “o agitador de fora”. Embora nada fosse mais óbvio a olho nu que o fato de que os membros de sindicatos eram sempre os melhores trabalhadores, os mais inteligentes, os mais bem preparados.(AV,)

Conclusão:
Com o advento da sociedade industrial, ocorre uma completa reorganização da sociedade, com a atividade humana passando a ser considerada mera engrenagem no conjunto do processo industrial.
Weber traça o quadro do nascimento e desenvolvimento da modernidade sendo caracterizado principalmente por esta racionalização.Para empreender o seu estudo da modernidade, ele se dedica neste texto a entender a relação entre o protestantismo e a conduta econômica capitalista.Ele vai buscar as origens do capitalismo, que é para ele a grande marca da civilização ocidental, verificando a influência da religião na origem deste sistema, mas não podemos deixando de buscar elementos que identifiquem o progresso deste processo da racionalização.
A racionalização, a crença em uma Razão que se desenvolve ao longo da história, tomando consciência de si mesma à medida que avança, e neste processo determinando o mundo dos homens, representa uma concepção indiscutivelmente ligada ao nome de Hegel e a Revolução Francesa está no cerne de toda transformação da sociedade rumo a uma burguesia que vai instaurar a revolução industrial.
Para Gramsci, a Revolução Francesa é um exemplo de como a política e a cultura são interdependentes.A cultura se apresenta como uma critica elaborada com base nos acontecimentos sociais e políticos, que permite explicar a situação e unir os indivíduos num amplo movimento que se estende à massa dos que sofrem com a mesma opressão.A critica possibilita avançar de uma compreensão fragmentária e imediata dos fatos para uma visão universal e coletiva, alterando o modo de viver e de sentir.
Na contramão porem deste processo de união está o caráter mecânico se estende da indústria a toda atividade humana, agora passível de quantificação numérica. Este processo de individuação pode ser verificado na afirmação de Maria Stella Bresciani: o homem ao sobrepujar-se à natureza, havia caído na armadilha de sua própria astúcia [pois] a cidade representa o [...] lugar onde a subordinação da vida a imperativos exteriores ao homem se encontra levada às últimas conseqüências”, ou quando Valéry descreve um dos elementos desta civilização técnica: “o homem civilizado das grandes metrópoles volta a cair num estado selvagem, isto é , em estado de isolamento.A sensação de estar necessariamente em relação com os outros, anteriormente estimulada pela continua necessidade, embota-se pouco a pouco pelo funcionamento, sem atritos do mecanismo social.Cada aperfeiçoamento deste mecanismo torna inúteis indeterminados atos, determinados sentimentos e emoções.”
O conforto isola.(54)
Esta união proposta por Gramsci através da cultura, que vai contra ao individualismo do sistema capitalista, também está presente em Marx: a união não é só aproximação de corpos físicos (...) é educação recíproca e recíproco controle.
Esta cultura, presente através da ideologia aparece a partir da filosofia como a historia de uma época, ou a massa de variações que o grupo dirigente logrou determinar sobre a realidade precedente, portanto elas, a historia e a filosofia, formam um bloco histórico.O papel desta filosofia no seio do bloco ideológico é representado pela influencia sobre as concepções de mundo difundidas no interior das classes auxiliares e subalternas (senso comum).
Ele continua, afirmando que: qualquer filosofia histórica deve se afastar do senso comum, tendo o cuidado, no entanto, de permanecer em contato com estas camadas populares, “a fonte dos problemas a estudar ou a resolver”.A resolução desta relação deve ser assegurada pela política que assim assegura a unidade do bloco histórico.(HP25)
A estrutura ideológica da classe dirigente, “organização material destinada a manter, defender e desenvolver a frente teórica”, ela é formada por todos meios de comunicação social e todos os instrumentos que permitem influenciar a opinião publica.(HP27)
É importante a sua visão com relação ao vinculo do intelectual e a classe fundamental a medida que: “Não existe uma classe independente de intelectuais, mas cada grupo contem as suas próprias camadas de intelectuais , ou tende a forma-la”.Desta forma, as mais importantes estão inseridas dentro do grupo dominante, formando-se categorias especializadas para exercer esta tarefa em conexão com os grupos sociais mais importantes, este vinculo é particularmente estreito quando o intelectual se origina na classe em que ele representa.Como as classes subalternas têm que “importar” os seus intelectuais estão vulneráveis, pois a “consciência de classe” de seus intelectuais pode ser menos elevada e estes podem ser cooptados pelo regime dominante.(HP,85)



BENJAMIM,W. “Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação”(BR)
BENJAMIM,W. “Modernidade”(BM)
ELIAS,N. “A sociedade dos Indivíduos(NE)
HORKHEIMER. “Teoria tradicional e teoria critica”(PH)
LICHTHEIM,G. “As idéias de Lukács”(GL)
PORTELLI,H. “Gramsci e o bloco histórico”(HP)
ROSDOLSKY,R. “Genese e estrutura de “O capital” de Karl Marx”
SCHLESER, A “Revolução e cultura em Gramsci”(AS)
VASCONCELOS, J. “Tese sobre: Anarquismo e Utopia”(JV)
WEBER, M. “O capitalismo e a ética protestante”

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Vida-clipe

Vejo pelo caleidoscópio a minha vida
Energizada como um videoclipe
O relógio se confunde
Perde o tempo, tem um chilique
Sinto uma vez eu tão especial
Daí a vida real volta e
me desliga num simples clique

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O LAMPIÃO DE FERNANDO VILELA: NEM HERÓI, NEM FACÍNORA... DEMASIADAMENTE HUMANO.

Para ver as figuras acesse: http://www.gelbc.com.br/pdf_jornada_2011/luiz_zanotti.pdf

O LAMPIÃO DE FERNANDO VILELA: NEM HERÓI, NEM FACÍNORA... DEMASIADAMENTE HUMANO.

Luiz Roberto Zanotti


RESUMO: Este artigo pretende analisar a personagem Lampião no romance gráfico Lampião e Lancelote de Fernando Vilela com enfoque em sua ambivalência. Lampião, uma das personagens mais retratada pelas artes brasileiras, geralmente é caracterizado ou como um herói ou como um facínora, ou seja, enquanto para alguns autores, o cangaceiro é apresentado somente através de seu lado positivo de um revolucionário em luta contra o coronelato, para outros, o seu lado negativo de um bandido sanguinário é ressaltado. Estas duas abordagens fazem como que a personagem perca toda possibilidade de uma análise multi-interpretativa, o que a aproxima de uma visão cartesiana, onde se procura encontrar a verdade atrás de uma certa aparência.
Palavras-chave: Cordel, Romance gráfico, Lancelote.
A capa de Lampião e Lancelote (vide figura 1) já indica a contraposição que se seguira por todo o romance entre a predominância da cor prateada para Lancelote e a paisagem medieval inglesa, e a cor dourada para Lampião e o sertão nordestino.

FIGURA 1
Como veremos no decorrer deste estudo, a cor prata, para Ad de Vries (p. 425) significa a pureza, a inocência, uma consciência pura, como pode ser verificado, na utilização do cálice de prata nas cerimônias religiosas, e também sabedoria (a língua do justo tem a cor prateada). Além disso, a cor prata lembra o feminino, a lua e a noite em oposição ao dourado do masculino, do dia e o sol.
Para Gaston Bachelard (2002, p. 9), esta diferença entre o feminino e o masculino também se reflete nos elementos água e fogo, pois o elemento água é mais feminino é mais uniforme e constante que o fogo. Ele simboliza as forças humanas mais escondidas, mais simplificantes, tais quais as forças imaginantes da mente que, no impulso da novidade, escavam o fundo do ser. Como pondera Bachelard (2002, p. 9):

É nela que materializamos os nossos devaneios; é por ela que nosso sonho adquire sua exata substância; é a ela que pedimos nossa cor fundamental. Sonhando perto do rio, consagrei minha imaginação à água, a água é verde e clara, a água enverdece os prados. (...) Não é preciso que seja o riacho da nossa casa, a água da nossa casa. A água anônima sabe todos os segredos. A mesma lembrança sai de todas as fontes.

O elemento fogo, ainda segundo Bachelard (1999, p. 2-3), associa-se às crenças, às paixões, ao ideal, à filosofia de toda uma vida. Deve-se tomar cuidado com um pensamento eminentemente objetivo, sob o risco de jamais se alcançar uma atitude objetiva. O fogo conduz sempre ao aprisco poético, onde os devaneios substituem o pensamento, onde os poemas ocultam os teoremas. Porém, Bachelard pergunta: “O que é o fogo?”, e ele mesmo responde que, ainda hoje, as intuições do fogo permanecem presas a uma pesada tara e, apesar de toda racionalidade científica, ele ainda está presente em nossa alma (ou se preferirem psique). Existe ainda uma secreta idolatria pelo fogo, uma psique que guarda os vestígios do homem velho na criança, da criança no homem velho, do alquimista no engenheiro.
Em A psicanálise do fogo, o filósofo busca explicar as seduções que falseiam as induções, a valorização imediata da substância, o caráter objetivo e subjetivo do fogo, seus valores não discutidos, seu caráter duplo que,
ao subir das profundezas da substância se oferece como amor, e torna a descer à matéria e se oculta, latente, contido como o ódio e a vingança. Dentre todos os fenômenos, é realmente o único capaz de receber tão nitidamente as duas valorizações contrárias: o bem e o mal. Ele brilha no Paraíso, abrasa no Inferno.” (BACHELARD, 1999, p.12)

Com relação ao romance propriamente dito, a primeira aparição é imagem (figura 2) de uma Inglaterra (na época Bretanha) medieval, prateada e sombria, um território dividido em reinos independentes, onde alguns registros históricos apontam para um guerreiro chamado Arthur, que posteriormente entraria gloriosa e definitivamente para a história, sob a mascara do famoso rei Arthur e seus cavaleiros da Távola Redonda.


FIGURA 2
As primeiras referências a Arthur vêm do norte da Bretanha. Ele teria nascido por volta de 475, na pequena aristocracia da província. Com exatos 20 anos, montou um grupo de cavaleiros que saqueava a Cornualha e Devon. Naquela época, o seu bando não passava de um exercito pessoal, até o momento em que começaram as campanhas realmente sérias, no inicio do século VI.
Villela, assim como a maioria dos cantadores nordestinos, antes de mais nada, pede licença para a falar do cavaleiro Lancelote (figura abaixo) que ele apresenta cavalgando entre castelos medievais. Um cavaleiro bom, nobre, forte e delicado, que não tem medo de enfrentar nenhuma batalha.

Lancelot é um dos cavaleiros da Távola Redonda do Rei Arthur, mas parece não possuir nenhuma ligação com a realidade inglesa da época e, portanto, é fruto da ficção, mas uma ficção antiga e com profundas implicações históricas, pois Artur e os seus cavaleiros estão dentro do imaginário inglês, e ainda hoje, não há maior honraria do que ser nomeado cavaleiro pela rainha da Inglaterra.
Na sequencia (figura 3), Villela traz Guinevere e Morgana, duas das principais personagens dos romances da Távola Redonda, que para Jean Markale (p. 40), simboliza a confrontação entre a religião cristã e as práticas herdadas do druísmo num verdadeiro choque de culturas. Guinevere era uma piedosa rainha cristã, enquanto Morgana é uma bruxa vilã que servia para demonizar a religião e os ritos pagãos da cultura celta.


FIGURA 3

Conforme vários textos da época, Morgana seria meio-irmã do rei Arthur e ao longo de toda lenda se esforça para prejudicá-lo, fosse aprisionando-o, fosse fazendo de tudo para matá-lo, a fim de recuperar o poder que julgava usurpado. A rainha Guinevere, esposa do Rei Arthur, era o extremo oposto, com o seu nome em galês Gwenhyfar sendo bastante revelador: “branca aparência”, que remete diretamente à pureza da cor prata.
Para Jean Markale (p. 43), Morgana tinha um sentimento de frustração em relação à esposa do irmão. Ela era apaixonada pelo belo Lancelote e não tolerava que ele fosse o escolhido da rainha. Nesta perspectiva, apesar de Guinevere aparecer como uma anti-Morgana, ela também amava Lancelote apaixonadamente, numa relação adultera, o que obviamente é pouco conforme à idéia de uma rainha católica
O virar da pagina mostra um sertão nordestino dourado (figura 4), dominado pelo sol e pelo gado. Sertão reportado por Euclides da Cunha em Os Sertões que relata a história deste povo sofrido que habita o sertão brasileiro, uma região de terras não cultivadas. Um vasto território onde não havia cercas delimitando as propriedades. As cercas só eram usadas para proteger a roça do gado, e onde os vaqueiros se trajavam com uma indumentária sui generis feita inteiramente de couro (BARROS, 2000, p. 46).


FIGURA 4

A importância do gado que remete a própria origem do sertanejo, pois para muitos pesquisadores, o homem chegou ao sertão deixando para trás o sedentarismo, uma forma de vida inspirada na produção agrícola para iniciar o chamado “ciclo do gado”. Mas esta pecuária tem pelo menos uma grande diferença da pecuária litorânea ou do resto do país. Conforme podemos observar na figura 5, através das imagens dos mandacarus, o sertão é uma região carente de água. Por este motivo, o sertão traz todas as implicações da vida nômade, a necessidade da busca de novos pastos, haja vista, o rápido desgaste nessas áreas semi-áridas. O isolamento característico do homem desta região está ligado a esta forma de criação de gado que não comporta o trabalho massificado. O criador era um homem individualista, autônomo, improvisador e, sobretudo, livre. É importante também observar que, distante da dos traços culturais do sul do Brasil, a personalidade sertaneja também é constituída na indiferença no trato com o sangue devido à predominância da atividade pecuária. “O menino sertanejo muito cedo banhando-se de sangue, ajudando o pai a sangrar o boi ou o bode para o preparo da carne-de-sol” (MELLO, 2005, p. 21).


FIGURA 5

No meio destes mandacarus, Vilela apresenta uma série de cangaceiros, “homens sem temor de risco”, que herdaram a valentia de seus antepassados, uma população que foi obrigada a lutar contra os indígenas locais e até mesmo animais ferozes, ficando isolada e empobrecida.
Na sequencia da ilustração (Figura 6) que se encontra na pagina seguinte, Vilela finalmente apresenta Lampião juntamente com Maria Bonita, sendo fiel à imagem do casal cangaceiro, que bem antes de serem assassinados em Angicos pela patrulha volante, já havia se transformado numa figura lendária no panorama sociocultural brasileiro devido não só aos seus feitos, mas também devido a uma mídia ávida de notícias sensacionalistas e de todo um trabalho literário, onde predominava a literatura de cordel, sem dúvida uma das fontes de referência para o romance.
No que tange aos estudos históricos em relação a esta personagem, eles apresentam uma série de abordagens perspectivas que vão desde a sua apresentação como uma pessoa honesta e trabalhadora, mas que a miséria e a injustiça social fizeram com que embarcassem numa vida de crimes sem volta, até a sua retratação como uma pessoa extremamente violenta.

FIGURA 6

Um fator de suma importância na pesquisa histórica a respeito de Lampião diz respeito à proximidade temporal com o fenômeno, o que significa dizer que foram possíveis a obtenção de entrevistas com uma série de pessoas que tiveram contato real com Lampião. Também é mister de mencionar um grande volume de fotos, filmes e reportagens efetuadas por uma mídia ávida de noticias sobre o cangaceiro. A verdade é que talvez nenhuma outra personagem histórica brasileira tenha sido tão “explorada” como o cangaceiro nordestino.
Todavia, apesar desta propalada proximidade, renomados pesquisadores, tais como, Luitgarde Barros (2000), Frederico Pernambucano de Mello (2005), Rui Facó (1983) e Maria Christina Machado (1978), entre outros, possuem diferentes visões sobre este assunto. Barros e Mello ressaltam o seu caráter ligado ao banditismo , enquanto Machado e Facó Machado apresentam, dentro de uma perspectiva marxista, Lampião não como um fato isolado, mas sim como o resultado de uma época em que se processava a luta surda, empreendida pelo vaqueiro contra o senhor da terra. (MACHADO, 1978, p. 6).
A jornalista Vera Ferreira, neta de Lampião, em seu livro De Virgolino à Lampião (1999), vai trabalhar esta discrepância entre os historiadores propondo uma história do cangaço onde existam, pelo menos, dois Lampiões:
[...] um (real) que teve a sua existência real, que viveu todas as vicissitudes que um homem a margem da lei experimenta, e outro (mítico) que foi criado a partir de cada façanha efetiva ou inventada. Este é um produto coletivo que vai cada vez mais sobrepujando o primeiro. Há uma abundante literatura sobre o cangaço, mas poucos oferecem um quadro histórico mais ou menos completo. Tem-se praticado em torno do cangaço ainda uma espécie de história do tipo tradicional, ancorada nos heróis e nos seus grandes feitos, que faz com que a sua participação no imaginário continue crescendo. (FERREIRA, 1999, p. 10)

Seja lá qual for a perspectiva adotada, todas as biografias de Lampião têm invariância de uma ordem de dados, também salientados pelos informantes: era um exímio cavaleiro. Almocreve, cruzava as fronteiras de Pernambuco, Alagoas e Sergipe, cujos caminhos percorria com intimidade, conhecendo como a “palma da mão” a rede de rios e riachos que abastecia o Moxotó e o Pajeu. Palmilhava os pés de serra, grotas e socovões, deslocando-se na catinga com a naturalidade dos experimentados vaqueiros do Pajeú. (BARROS, 2000, p. 85)
Porém, se o fato de Lampião tiver sido uma criança pobre é aceito de uma maneira geral, mesmo esta infância e juventude de uma criança sertaneja, passa a ser ideologizada. Maria Machado afirma que ele desde muito menino, pelo fato de ter assistido muitas rixas no sertão, onde o coronel sempre levava a razão, já criava conceitos cada vez mais rígidos contra os potentados. Machado apresenta como argumento um poema atribuído a Lampião:
Se os homem desse aos vivente
O que açambarca os banqueiro
E dividisse as quintanda
E tudo dos masoquero
Neste mundo de miséria
Não havia cangaceiro (MACHADO, 1978, p. 36)

Esta opção de obter a justiça através da violência, que para Machado é causada por uma revolta infantil só vai fazer crescer com o processo de desenvolvimento de Lampião. Outro fator preponderante na formação do cangaceiro está na sua origem numa região atormentada pelas secas, uma paisagem árida. Neste ambiente sujeito à longos períodos de estiagem, acabam por empurrar muitos dos seus habitantes para o cangaço como meio de vida.
Mello (2005, p.190) chama a atenção para a correlação entre a seca, as agitações políticas e a rapinagem cangaceira, pois a seca promovia a desarticulação da incipiente estrutura governamental. O pesquisador oferece como argumento o editorial do Jornal do Recife, edição de 5/12/1926, onde é relatado que nos sertões de Pernambuco estavam surgindo outros bandos, que assim como o bando de Lampião, estavam fortemente armados e municiados, depredando e arrasando tudo nas suas passagens sinistras.


FIGURA 7

O dourado dá lugar á cor preta, que para Ad Vries (p. 50) está relacionado com a sombra, com a noite e com própria morte. A morte que, como vimos, está impregnada na cultura sertaneja. A noite, por sua vez, para as pessoas que não têm uma casa para morar acaba por se transformar num verdadeiro animal selvagem que vai causar o medo (BACHELARD, 2003, p. 172).
Naquela época, o panorama não poderia ser mais sombrio e mortal, com os coronéis, donos de grandes latifúndios no Nordeste, com total autoridade sobre os sertanejos e com poderes de vida e morte sobre eles não podiam permitir que a sua autoridade fosse colocada à prova: qualquer tipo de agressão gerava uma resposta ainda mais violenta, como por exemplo, exterminar totalmente a família do agressor.
Vilela, assim como Machado (1998, p. 37), mostra um Lampião e seus cangaceiros como homens em luta contra o coronelato: “homens que lutavam porque não chegaram a conheceram a justiça. Fizeram, então, a justiça com as próprias mãos. Eram os fora-da-lei. Mas onde realmente estava a lei? No bolso dos ricos ou no porrete do coronel?”
A cena seguinte volta para a Inglaterra que, segundo o autor, vivia nas trevas da Idade Média, o que é realçado com a utilização da cor preta que predomina metade da ilustração. Lancelote vai cavalgando pelas terras do Vale do Lago Sagrado onde vivia a feiticeira Morgana, que frustrada da possibilidade de tê-lo para si, lançou um feitiço nop formato de uma nuvem branca, pela qual se adentrou o cavaleiro (Figura 7), passando por um portal do tempo e chegando ao sertão nordestino.


FIGURA 8

O cavaleiro passa a cavalgar pelo sertão nordestino até o momento em que se defronta com Lampião (Figura 9). Este encontro se dá primeiramente pela mistura das cores prata e ouro. Lampião ao avistar o cavaleiro, em meio ao calor nordestino, ordena-o a parar, iniciando um diálogo dominado por insultos mútuos.
Os encontros de Lancelote e Lampião, e da Era Medieval com o sertão, promovidos por Vilela pode ser também verificado através da literatura de cordel. Como sabemos, a literatura de cordel é uma espécie de poesia popular que é impressa e divulgada em folhetos ilustrados com o processo de xilogravura. Escritos em estilo épico, os versos do cordel, naturais filhos das gestas medievais, dos romances de cavalaria transplantados da Península Ibérica, fecundaram a língua e o imaginário das populações sertanejas (BARROS, 2000, p. 14).



FIGURA 9


Os cordéis chegaram ao Brasil no século XVIII, mas hoje, ainda é possível, encontrá-los sendo vendidos em algumas regiões pelos próprios autores, sendo que, algumas vezes, estes poemas são recitados em público, ou, até mesmo acompanhados pelo som das violas. A sua especificidade advinda de ser uma importante fonte de memória popular vai influenciar vários escritores nordestinos, tais como: João Cabral de Melo, Ariano Suassuna, José Lins do Rego e Guimarães Rosa.
Estes pequenos livretos são escritos através de uma linguagem simples, com uma tendência de se usar os recursos humorísticos no tratamento de fatos da vida cotidiana da cidade ou da região, tais como: festas, disputas políticas, fatos pitorescos, assuntos religiosos, atos de heroísmo e vilania. Percebe-se, todavia, que não obstante a aparente simplicidade da linguagem, muitos poemas de cordel possuem uma linguagem rebuscada, muito distante da parcimônia de palavras, um elemento típico da sociedade sertaneja.
Luitgarde Barros (2000, p. 14), apresenta como hipótese para este fenômeno, a influência da própria literatura em seu estilo épico, proveniente das gestas medievais e dos romances de cavalaria transplantados da Península Ibérica, que fecundaram a mãe agreste, a língua e o imaginário das populações sertanejas. Ainda, segundo Barros (2000, p. 156), no processo de heroificação do cangaceiro, ainda é importante lembrar a contribuição trazida pelo cordel no sentido da aproximação dos feitos do cangaço às façanhas medievais que são relatadas no livro História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França que durante tanto tempo circulou pelo Nordeste, inspirando cantores e poetas populares. Os cordelistas adaptaram alguns elementos advindos das gestas medievais à catinga como príncipes vestidos com gibão, pelejando pelos sertões nas derrubadas de boi, numa luta de trabalho e força esperando alcançar com a vitória o premio cobiçado, uma donzela:

A travessia de setenta e sete léguas de catinga, enfrentando onça e boi brabo, levaria um valente a um distante castelo onde vivia uma princesa. Amarrando o cavalo no copiá de uma taipa, o rapaz olha ao longe a transfiguração da princesa, filha do fazendeiro. As moças direitas, filhas de homens de bem, são princesas daqueles homens das armas, ainda presos a alguns antigos valores (BARROS, 2000, p. 157).

Esta aproximação medieval com Carlos Magno é também lembrada por Curran (1988, p.69), que compara o modelo narrativo do herói-cangaceiro Antonio Silvino de Leandro Gomes de Barros com a personagem Carlos Magno no livro medieval. O poeta tirou dois episódios para criar dois clássicos do romance de cordel: A Batalha de Oliveros com Ferrabraz e A prisão de Oliveros.Câmara Cascudo cita casos de sertanejos cujos filhos se chamam Carlos Magno, Rolando ou Oliveros. Na literatura de cordel, o vaqueiro, o valente sertanejo e o cangaceiro têm traços de Carlos Magno ou de seus cavaleiros, embora usem chapéu de couro, o gibão e as perneiras do interior, em vez de armaduras de da espada de aço. Veja-se o que diz Antonio Silvino nesta cena de Gomes de Barros que lembra Roncevalles:

Eu choro a falta que faz-me
Todos os meus companheiros
Qual Carlos Magno chorou
Por seus doze cavaleiros.
Nada me faz distriar,
Não deixarei de seguir
A morte dos cangaceiros (GOMES DE BARROS citado em CURRAN, 1988, p. 69)

Num contexto, tanto medieval, quanto sertanejo, onde a honra é a qualidade mais importante para um homem, a disputa verbal entre os dois cavaleiros, como não podia deixar de ser, acaba por se definir pela declaração de guerra, com Lampião formando com seus cangaceiros seu bando dourado, enquanto Lancelote chama todos os cavaleiros do Rei Arthur e até mesmo o mágico Merlin para formar seu bando prateado.


FIGURA 10

Os bandos que num primeiro momento estão separados (Figura 10) entram numa luta feroz e longa que pode ser verificada nas nove páginas seguintes, conforme figura 11.


FIGURA 11
A luta termina através de uma mistura entre o sertão e a Era Medieval, que já observamos nos cordéis, com Lampião numa armadura maior que ele, e Lancelote com os trajes de Lampião. Lampião pega a sanfona e começa a tocar um xaxado em homenagem a Lancelote. Esta ligação do cangaço, e em particular de Lampião com a música, ao trazer consigo a imagem de um cangaceiro possuidor de um lado romântico forte, reforça a figura de Lampião como um homem bom e amoroso que o destino desviou dos caminhos do bem. Esta imagem de Lampião como um homem de bons sentimentos vai receber um reforço a partir da canção Acorda Maria Bonita composta por Volta Seca e registrada em disco fonográfico em 1957.
A luta das nove páginas anteriores é substituída por seis paginas onde todos dançam, desde Lampião com Guinevere, Maria Bonita e Lancelote até o momento em que a feiticeira Morgana desgostosa com o rumo dos acontecimentos, resolve acabar com a festa e através de uma magia colocou todo mundo neste cordel de Vilela.


FIGURA 12

Assim, Vilela consegue quebrar a visão dicotômica herói-bandido de Lampião relativizando posições pragmáticas na sua obra a partir da escolha da diversidade de cores/símbolos (cores preta, dourado e prata), da utilização de várias linguagens (verso, sextilha do cordel sertanejo, prosa, narrativa épica), de recursos gráficos (carimbo e xilogravura), ou ainda de elementos intertextuais. Para os defensores de Lampião como um bandido onde só podemos encontrar a violência e a atrocidade, ele mostra o cangaceiro com pouca paciência e que por qualquer motivo fútil, como a discussão com Lancelote, parte para o caminho da violência. Para os que acreditam na “boa índole” ele oferece o lado humano de um indivíduo que não foi mais violento do que o cavaleiro Lancelote, um exemplo paradigmático de herói medieval, e assim como o cavaleiro é capaz de ter um grande amor por uma mulher. Neste aspecto aparece a imagem de um nordestino generoso e justo, cruel e tolerante, prudente e arrojado, que soube com esse comportamento meio contraditório manter a ordem no seu bando. Um cangaceiro que era um líder, mas que apesar de ser um condutor duro e inflexível, foi capaz de amar com ternura uma mulher, a quem foi fiel e companheiro.

Referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Afonso, 1999.
_______O ar e os sonhos. São Paulo. Martins Afonso, 2001.
_______A água e os sonhos. São Paulo. Martins Afonso, 2002.
_______A terra e os devaneios do repouso. São Paulo. Martins Afonso, 2003.
BARROS, Luitgarde O. C. Derradeira Gesta, Lampião e Nazareno: Guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.
CURRAN, Mark. História do Brasil em cordel. São Paulo: Epusp, 1998.
DE VRIES, Ad. Dictionary of Symbols and Imagery. Londres: Nort-Holland, 1974.FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1983.
FERREIRA, Vera e AMAURY, Antonio. De Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia Visual, 1999.
Markale, Jean. A cristianização dos druidas. História Viva. São Paulo, volume V, páginas 41-43, março 2005.
MACHADO, Maria Christina Matta Machado. As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo: Brasiliense, 1978.
MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A girafa, 2005.
VILELA, Fernando. Lampião e Lancelote. São Paulo: Cosacnaify, 2007.