sábado, 8 de maio de 2010

ENTRE O CINEMA DE GLAUBER ROCHA E O TEATRO DE AMIR HADDAD: O DIÁLOGO INTERMIDIÁTICO DO CANGAÇO

ENTRE O CINEMA DE GLAUBER ROCHA E O TEATRO DE AMIR HADDAD: O DIÁLOGO INTERMIDIÁTICO DO CANGAÇO

Luiz Roberto Zanotti (UFPR)

Introdução
O presente ensaio se insere nos estudos de tradução intersemiótica e cultural: visa examinar o processo intermidiático da personagem “cangaceiro” – Lampião em Auto de Angicos, e Corisco, em Deus e o diabo na terra do sol− a partir da transposição do texto dramático Auto de Angicos (2003), de Marcos Barbosa, para o espetáculo intitulado Virgolino e Maria: Auto de Angicos (2008), com direção de Amir Haddad, e da norma extra-textual da coexistência de elementos mutuamente excludentes que se encontra presente, tanto no longa-metragem de Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do sol (1964), como no espetáculo de Amir Haddad.
Esta noção de normas extra-textuais − conforme conceito apresentado através das palestras de Wolfgang Iser por ocasião do VII Colóquio UERJ (ROCHA, 1999) − é de suma importância para a nossa análise, pois através da mesma abandonamos o tradicional conceito de hipertextualidade de Gerard Genette (2005), que descreve a possibilidade das intermináveis correlações entre textos, para nos fixarmos única e tão somente na coexistência dos elementos mutuamente excludentes.
Assim, trabalhamos com a possibilidade da coexistência do “mau” e do “bom”, nos afastando da grande maioria das obras sobre o cangaço, que destacam a personagem do cangaceiro – dentro de um plano imaginário – ou como um completo herói, ou como um vilão, como é o caso de inúmeros textos literários, fílmicos e músicos, tais como: a literatura infantil (Lampião e Maria Bonita: o Rei e a Rainha do Cangaço (2005), de Liliana Iacocca e Rosinha Campos), a literatura ficcional, que vão dede o primeiro romance escrito sobre cangaço no Brasil, O cabeleira (1981), de Franklin Távola, até obras como Lampião, o Rei do Cangaço (s/d.), de Eduardo Barbosa, e Capitão Virgolino Lampião (1975), de Nertan Macedo, os filmes Lampião, o rei do cangaço, de Coimbra, e Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, as músicas: Acorda Maria Bonita (1957), composta pelo cangaceiro Volta Seca do bando de Lampião; Mulher rendeira (s/d), composição atribuída por muitos a Lampião; bem como a trilha musical de Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Sergio Ricardo e Glauber Rocha
Dessa forma, inicialmente traçamos uma breve análise desta epopéia intermidiática da personagem Lampião contextualizando a personagem e a sua violência que mostra, através da diversa bibliografia sobre o cangaço, as condições históricas e sociais de como essa figura “real”, histórica e imaginária que através de um processo de mitificação acaba por eleger Lampião, entre vários cangaceiros possíveis (Cabeleira, Jesuino Brilhante e Corisco, como o herói (ou anti-herói) de toda uma cultura nordestina.
A seguir, fazemos uma ligeira revisão da teoria iseriana desde o aparecimento da teoria dos efeitos (reader-response criticism), que enfoca a assimetria entre texto e leitor, até o conceito de antropologia literária, que trata da interação entre o fictício e o imaginário, para depois nos focarmos na similaridade das duas obras no que tange à coexistência dos elementos mutuamente excludentes.

1.Contextualização do cangaceiro como personagem

Essa breve contextualização será o ponto de partida para a discussão a respeito do desenvolvimento estético da personagem Lampião (herói ou anti-herói), uma personagem que desde o seu aparecimento começou a chamar a atenção dos artistas em geral. Essa figura que acabou por se tornar lendária se formou não só em razão de seus feitos, mas também em razão de uma mídia ávida de notícias sensacionalistas, que propiciou todo um trabalho artístico, inspirando poemas, músicas, peças teatrais, artesanato, romances, etc.
Uma das mais interessantes estetizações da personagem Lampião está ligada a um gênero cinematográfico que recebeu a denominação de “nordestern”, composto em sua grande maioria, por filmes ambientados na região nordestina, espaço, onde se verificou a ocorrência do fenômeno cangaço; fez o encantamento da platéia através de uma temática brasileira, da indumentária original e do forte esquema musical, apesar do esquema simplório no estabelecimento do desenvolvimento do conflito que geralmente colocava heróis-mocinhos contra bandidos.
Encontramos esse herói entre o bando de cangaceiros, mas ele não é exatamente um cangaceiro, sente-se deslocado, é o que poderíamos chamar de um “cangaceiro desajustado”; encontramo-lo relacionado com o cangaço, mas invariavelmente a sua relação com o cangaço são de conflito. (BERNARDET e RAMALHO JUNIOR, 2005, p. 33)
Mas esta posição dicotômica “bonzinho-malvado” também repercute até mesmo entre renomados historiadores e antropólogos, tais como, Luitgarde Barros (2000), Frederico Mello (2005) e Maria Christina Machado (1978), entre outros, que possuem diferentes visões sobre este assunto, sendo que enquanto Barros e Mello ressaltam o seu caráter ligado ao banditismo, procurando desmistificar a imagem mitológica de Lampião como justiceiro e ideologicamente voltado para a defesa dos fracos num combate ao coronelismo, Machado apresenta Lampião − dentro de uma perspectiva marxista − não como um fato isolado, mas sim como o resultado de uma época em que se processava a luta surda, empreendida pelo vaqueiro contra o senhor da terra. (MACHADO, 1978, p. 6).

2.A teoria dos efeitos (A interação entre o leitor e o texto)

Pode-se dizer que tanto a teoria dos efeitos de Iser, como a estética da recepção, que tem como o seu principal artífice Hans Robert Jauss, são em grande parte, inspiradas em Hans-Georg Gadamer; mas enquanto a estética da recepção se articula a partir da reconstrução histórica de juízos de leitores particulares, objetivando verificar o modo como se processa a interação das expectativas tradicionais do leitor frente a um texto específico, ou seja, através da análise da fusão dos horizontes de expectativa com o ato de leitura; a estética do efeito é trabalhada a partir do texto, uma vez que ela pretende elaborar uma descrição da interação fenomenológica que ocorre entre texto e leitor.
Iser elabora o constructo da existência de uma assimetria inicial entre texto e leitor, sendo que a estética do efeito almeja compreender o ato de leitura como uma forma particular de negociação daquela assimetria. Para tanto, investiga a estrutura própria dos textos literários, valorizando a interação específica que tal estrutura provoca.
Em suma, enquanto a estética da recepção trabalha com atos de leitura historicamente verificáveis, a teoria do efeito estético busca o estabelecimento de um modelo genérico que dê conta do próprio ato de leitura de textos literários, independentemente de seus contextos particulares de atualização. A teoria de Iser analisa o efeito estético como relação dialética entre texto e leitor, uma interação que ocorre entre ambos, ou seja, ainda que se trate de um fenômeno desencadeado pelo texto, a imaginação do leitor é acionada, para dar vida ao que o texto apresenta e reagir aos estímulos recebidos.
Do ponto de vista epistemológico, essa metáfora da interação designa uma instância textual que guia a recepção do texto e um leitor que "processa" ativamente o texto. Para Iser, quando produtiva, essa interação entre duas instâncias (agencies) se apóia na negatividade e na indeterminação enquanto modos de contato. Da mesma maneira que um texto bem-sucedido ultrapassa as fronteiras das determinações históricas e culturais, uma leitura produtiva processa e, com isso, muda ativamente o que é "manifesto" num texto. Gabriele Schwab lembra que para Iser: a determinação nos decepciona num texto tanto quanto numa leitura. (SCHWAB in ROCHA, 1999, p.37)
Ao se reportar à decepção com os textos “determinados” que oferecem uma simples busca da mensagem e do sentido, e propor o constructo da interação texto-leitor, Iser deixa claro a importância que credita à indeterminação de um texto, o que como veremos adiante possibilita a idéia da coexistência de elementos mutuamente excludentes. Iser, no primeiro capítulo “Arte parcial- A interpretação universalista” do livro O ato de leitura (1996) apresenta a inadequação do gesto da interpretação teórica da literatura que busca as significações aparentemente ocultas nos textos literários, tomando como exemplo o conto “The figure in the carpet” (1896), de Henry James, onde o autor problematiza a procura por significações ocultas nos textos − o que provavelmente desempenhou um papel importante na crítica literária de sua época −, mostrando a sua inadequação (ISER, 1996b, p. 23).
Assim, uma vez perdido o solo firme do “essencialismo” e com o texto deixando de ser o foco principal da análise, esta passa para o leitor em sua interação com o texto; e ciente que nenhuma história pode ser contada na íntegra, Iser vai trabalhar com o constructo de um texto que é pontuado por hiatos, lacunas e negatividades que têm de ser negociados no ato da leitura. A lacuna (vazio) no texto ficcional induz e guia a atividade do leitor com a suspensão da conectibilidade entre segmentos de perspectivas, possibilitando a participação do leitor no texto; enquanto a negatividade significa a não realização de um procedimento (que é esperado pelo leitor), isto é, a sua realização negativa com a intenção de empurrar o leitor para fora do texto.
Toda esta estrutura, segundo Schwab traz um aspecto fundamental na obra iseriana que mostra a sua tentativa de evitar as armadilhas da manifestação concreta e, em última instância, solapar qualquer forma de determinação, e cita: "o que a linguagem diz é transcendido por aquilo que ela revela, e aquilo que é revelado representa o seu verdadeiro sentido" (SCHWAB in ROCHA, 1999, p. 35).

3.A interação entre o fictício e o imaginário

A interação do fictício com o imaginário, assim como a interação leitor-texto, também abre vários espaços para a indeterminação, e a origem deste novo constructo “interação fictício-imaginário” se encontra no fato da teoria do efeito estético não conseguir explicar a aparente necessidade dos seres humanos por um meio de "fingimento" (ficção), uma característica que aparece nas investigações de Iser sobre o que de fato acontece quando lemos.
A partir desse pressuposto, Iser amplia o horizonte da teoria do efeito estético, a fim de transformar o estudo da estrutura dos textos literários e, sobretudo, da interação entre texto e leitor, numa investigação dos modos de operação que caracterizam o desenvolvimento de disposições propriamente humanas, apresentada em O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária (1996).
Neste ensaio, Iser apresenta a idéia de que a narração se encontra na fronteira que delimita o ficcional, o imaginário e a realidade, tornando possível a caracterização do referencial reportado, mas sem a possibilidade de ser por ele determinado, afirmando assim a proximidade entre os textos ficcionais e não-ficcionais, uma vez que eles são apenas materiais para a intenção do autor quando seleciona estes elementos que vão aparecer na narração, pois, não há representação puramente concebida, re-presentada.
O processo de elaboração do texto ficcional é bastante complexo, podendo ser caracterizado como uma travessia de fronteiras entre dois mundos, que sempre inclui, o mundo que foi ultrapassado e o mundo alvo a que se visa, que tanto pode se relacionar a uma mentira que busca exceder a verdade, como uma ultrapassagem do mundo real. Para se perceber as implicações destas duplicações é importante notar que os atos de fingir, componente básico dos textos literários, oferecem diferentes áreas para o jogo.
O fictício para realizar o que tem em mira, depende do imaginário − que não é auto-ativável −, pois o que tem em mira só aponta para alguma coisa que não se configura em decorrência de se estar apontando para ela: é preciso imaginá-la. O horizonte de possibilidades prefigurado pela transgressão de fronteiras inevitavelmente modifica as realidades que foram ultrapassadas, sendo que o imaginário só pode ser apreendido por meio de seus efeitos que uma vez ativados, faz com que o que era não possa permanecer o mesmo.
Sendo assim, a ativação desse potencial precisa ser moldada, e disso se encarregam os “atos de fingir”, ao forçarem a fantasia a assumir uma forma, para que as possibilidades abertas por eles possam ser concebidas, já que o próprio ato de fingir não pode conceber aquilo para o que ele apontou. A imposição de forma tem um duplo efeito: torna concretas as várias transgressões de fronteira, ao mesmo tempo, que converte o fictício num meio para que o imaginário se manifeste. (ISER in ROCHA, 1999, p. 71)
Vista sob esta perspectiva a literatura não reproduz ou espelha nada fora dela, mas antes apresenta algumas ilimitadas possibilidades que existem além das manifestações históricas concretas, sejam relativas aos sujeitos individuais, sejam referentes às culturas, e daí abre-se a possibilidade do aparecimento da coexistência de elementos opostos, que a princípio, dentro de uma filosofia cartesiana e dicotômica deveriam ser mutuamente excludentes.
Dessa forma, numa primeira abordagem pode-se dizer que enquanto o fictício se manifesta de uma maneira intencional, o imaginário trabalha de uma forma espontânea, com ambos fazendo parte de uma interação que se expande continuamente através de um jogo que tem o papel de uma estrutura reguladora da interação. Este jogo possui regras e os jogadores têm de obedecê-las na tentativa de saber que questão é essa. “Não existem respostas definitivas. Ao invés de um discurso vitimador, uma consciência crescente que num mundo aberto as soluções são, na melhor das hipóteses, provisórias, inexistindo respostas conclusivas” (ISER in ROCHA, 1999, p. 217).
Iser desenvolve a interação do fictício com o imaginário, apesar da dificuldade de qualquer afirmação de suas naturezas ontológicas, pois só podemos apreendê-los mediante uma descrição operacional das suas manifestações, através do jogo (play), uma estrutura capaz de propiciar diferentes tipos de interação, quer entre o texto e o leitor, quer entre o fictício e o imaginário. Isso significa que a “ficcionalização” sempre está sujeita a mudanças, em decorrência de sua inabilidade para controlar o alvo a que visava. O jogo emerge da coexistência do fictício e do imaginário que se fundem, visto que cada um é em si mesmo incapaz de cumprir qualquer função específica, sendo necessária a sua interação para desencadear aquele movimento de jogo.
Assim, num universo ficcional indeterminado, dentro de uma ilimitada perspectiva de interpretação apoiada pela dinâmica semântica fornecida pelo jogo interpretativo, e pelas mudanças constantes de realizações imaginárias, aparece a condição de existência para a “coexistência de elementos mutuamente excludentes”, um conceito, que segundo Jean Paul Riquelme não pode ser previsto por Aristóteles, pois ao contrário da mimesis; Iser mostra, desenleaando a trama aristotélica, que a leitura da literatura é múltipla, podendo chegar-se ao final dela, sem nunca esteja terminada, à semelhança das histórias que contava Sherazade (RIQUELME in ROCHA, 1999, p. 215).
Dentro, deste panorama, que Riquelme chama a “Antropologia literária” de um “espaço não-euclidiano” , pois Iser apresenta a noção da possibilidade da coexistência de termos excludentes como uma importante propriedade da obra literária, e porque não dizer da obra de arte em geral: A ficcionalidade como coexistência ou simultaneidade de elementos mutuamente excludentes, tradução de alguma coisa para outro registro, escapa a fundamentação ontológica (coisificação) e estimula a necessidade de compreendê-lo (ato de tradução correspondente a ausência de qualquer totalidade). (ISER in ROCHA, 1999, p. 221), ou como Oscar Wilde indicou: “uma verdade na arte é uma afirmação cujo oposto também é verdadeiro” (WILDE citado em ROCHA, 1999, p. 216).
Assim sendo, Iser se libertando das muletas literárias, vai trabalhar nas suas obsessões de dissolver as fronteiras, limites, e teorias levadas ao limite que estão relacionadas a resistência a movimentos essencialistas, totalizantes e ontológicos; vai trabalhar a literatura como uma obra em movimento; e assumir a importância da indeterminação e da coexistência de termos mutuamente excludentes, [...]. (SCHWAB in ROCHA, 1999, p. 227)

4.Coexistência de elementos mutuamente excludentes em Deus e o diabo.

Glauber Rocha ao filmar Deus e o Diabo vai buscar uma situação em que, segundo Avellar, a relação espectador/filme parte de um sentimento idêntico: o filme como uma expressão incompleta, melaço de cana, para ser refinada pelo espectador. Um provocador onírico, pois o filme é também um provocador crítico, e cita o próprio Glauber: “Na medida em que se dá ao espectador um tipo acabado [...], um tipo reduzido, um tipo estratificado, um tipo dentro dessa tradição, não se dá a menor possibilidade de diálogo com o espectador, porque se coloca [...] (AVELLAR, 1995, p. 17)
Da mesma forma como observou certa vez Marcel Duchamp, "o artista não é o único a realizar o ato de criação porque o espectador interpreta e decifra suas significações profundas e acrescenta assim sua própria contribuição ao processo criativo", Glauber vê a criação como uma série de esforços, de dores, de satisfações, de negações, de decisões que não podem nem devem ser plenamente conscientes, pelo menos no plano estético. A obra é a expressão em estado bruto, que deve ser refinada pelo espectador, pois: "Liberta pela imaginação o que é proibido pela razão" (GLAUBER citado em AVELLAR, 1995, p. 59)
Mas esta liberdade oferecida pela imaginação não significa para Glauber, assim como já vimos em Iser, que o filme altere a realidade, pois para ele sempre existe o aproveitamento e desenvolvimento de elementos reais:
Não há uma só coisa no filme que não corresponda a um dado real e concreto, inclusive o próprio fato do cangaceiro girar. Por que escolhi o Corisco? O Corisco tinha todas aquelas características que me interessavam: era um sujeito rápido, ágil, místico, histérico e verboso. Tinha tudo isso, se chamava Corisco porque ninguém acertava nele: andava rodando mesmo. (GLAUBER citado em AVELLAR, 1995, p. 87).
Mas Corisco é a própria constatação da coexistência de elementos mutuamente excludentes pois, no filme, o ator Othon Bastos que encena a personagem Corisco, além de emprestar a sua voz a sua própria personagem, faz ainda uma outra voz, a do Santo Sebastião - algo mais grave que a de Corisco, a idéia de usar a mesma voz para deus e para o diabo, segundo Avellar (1995, p. 22) surgiu somente durante a montagem, de modo a que o espectador pudesse identificar uma certa semelhança entre as propostas e mais rapidamente concluir com o filme que a terra é do homem, nem de deus nem do diabo.
Esta coexistência, segundo Claudio da Costa, também pode ser percebida em um espelhamento de uma na outra, pois enquanto Sebastião tem parte com Deus e com o Diabo, como diz Antônio das Mortes, Corisco é o diabo que foi possuído por São Jorge. Esses espelhamentos dobram em ambigüidades a palavra do cego e de seus mitos. A palavra mítica, afirma Luiz Costa Lima, é verdade e engano, simultaneamente. Com as palavras de Marcel Detienne, Costa Lima nos diz que, "no pensamento mítico os contrários são complementares" (COSTA LIMA citado em COSTA, 2000, p.68)
Deus e o diabo vai trabalhar com outras interações, além daquelas constatadas por Iser, pois a escrita da imagem é uma forma de jogo que afirma a interação infinita entre a palavra (som) e a imagem (fotografia), a conjugação em reversibilidade entre duas dimensões do audiovisual. Tal reversibilidade infinita torna possível a coexistência dos elementos contrários, pois como vimos, Glauber cria uma imagem onde o espectador descobre que não está a ser imposta uma visão dirigida como um produto concluído do autor, buscando eliminar a idéia do espectador como um ser que contempla, trabalhando com uma certa indeterminação. O artista quer expulsar e revelar no homem seu conflito e inconformismo com o mundo e impulsioná-lo ao desconhecido.Neste sentido, a coexistência dos excludentes trabalha no sentido de quebrar a resistência, a automação da consciência, na desconstrução do caráter normativo das coisas, a fim de abrir espaço para o novo: “Pela arte é possível "pensar a natureza e o absurdo" (GLAUBER citado em VENTURA, p. 170).
A “desrazão” que possibilita a coexistência dos excludentes faz parte da estética de Glauber que reivindica a libertação das variações ideológicas da razão e que promova a fusão do humano ao cosmos. A revolução explicita que a pobreza é um fenômeno da razão dominadora que recusa o desconhecido, classificando-o como irracional. A revolução é a "desrazão" que liberta o homem da razão repressiva. Ela se faz na imprevisibilidade (VENTURA, 2000, p. 284).

5.Coexistência de elementos mutuamente excludentes em Virgolino e Maria: Auto de Angicos.

Para evitar esta armadilha da dicotomia bom/mau, o diretor Amir Haddad, um dos maiores encenadores brasileiros contemporâneos que, desde a criação do Teatro Oficina em 1958 que vem dando provas de seu profundo envolvimento no desenvolvimento da dramaturga brasileira com o seu trabalho baseado na desconstrução da dramaturgia, abolindo o palco italiano, e investindo na utilização aberta dos espaços cênicos e na interação entre atores e espectadores, vai busca os elementos estéticos constitutivos de seu espetáculo, dando especial atenção à presença do ator ao invés da representação.
Esta “presença” que foi conceituada pelo filosofo alemão Hans Ulrich Gumbrecht (2004) que mostra como a dramaturgia reagiu às profundas mudanças no pensamento filosófico ocidental na sua crítica ao excessivo racionalismo contemporâneo, lembra que o homem de hoje esqueceu que os objetos (“coisas do mundo”) podem ser mais que uma simples atribuição de um significado metafísico e que o impacto dessas coisas pode ir além da razão, perpassando todo o corpo físico.
Para Lehmann, esta “produção de presença” trata-se de “trazer às coisas ao alcance, de modo que possam ser tocadas: [...] Nesse sentido, ele compara o acontecimento esportivo como o teatro medieval: tanto um quanto o outro não se demanda uma atitude hermenêutica, o ator não age como no teatro “moderno”, como se não notasse o público. (LEHMANN, 2008, p. 235)
Assim, uma das estratégias, utilizadas por Haddad para evitar a costumeira dicotomia “bonzinho-malvado” de Lampião, está na utilização desta “produção da presença”, que foi obtida ao escolher para o papel de Virgolino, o ator Marcos Palmeira, enquanto o papel de Maria foi entregue a Adriana Esteves, ambos com biótipos bem diversos das personagens nordestinas. Além disso, Haddad, diferentemente da produção anterior do espetáculo, dirigido por Elisa Mendes, Haddad não caracteriza as personagens com os tradicionais trajes do cangaço, os conhecidos defeitos físicos de Lampião.
Esta produção da presença, segundo Haddad − em entrevista para nós concedida em 1º de junho de 2008 – que evita a todo custo o “diálogo realista”, consegue exprimir melhor a densidade de sentimentos que move os personagens e, sobretudo, valorizar a corpo, o movimento livre dos atores sem marcações, assim como no seu teatro de rua. “Seja num ambiente fechado ou de rua, o espetáculo tem que proporcionar uma verdade para cada um dos espectadores que deve ser apresentada nua e crua, e não colocada como uma essência que poucos poderão atingir”.
Assim, nesse sentido Haddad já visando a necessidade de se afastar da perspectiva do “nordestern”, trazendo a constatação do caráter multifacetado (HALL, 2004) de Lampião, ele re-nomeia a peça Auto de Angicos para Virgolino e Maria: Auto de Angicos, lembrando que Lampião também é Virgolino.
Haddad coloca o espetáculo Virgolino e Maria : Auto de Angicos como um marco na dramaturgia brasileira a respeito da temática de Lampião pois não coloca um pré-julgamento de valores, Lampião não é nenhum Robin Hood e Dick Turpin das picadas do sertão como apresenta Eduardo Barbosa (s/d, p. 9), e nem uma pessoa possuidora de uma crueldade comparável a Hitler, como gostaria Pereira da Silva (citado em CARVALHO, s/d., p. VII).

Conclusão

Assim, a existência dos mutuamente excludentes que aparecem em Virgolino e Maria, também faz parte do repertorio de Deus e o Diabo, que trabalha não somente na dualidade da voz de Othon Bastos, mas também no conflito entre Antônio das Mortes e Manuel, o matador de cangaceiros e o vaqueiro são personagens igualmente condicionados por deus e o diabo, um na forma de agir, outro no modo de pensar.
Para Aguilar, são duas dimensões do mesmo personagem, projeções das duas cabeças de Corisco, pois o que Manuel ouve de Sebastião: “Você foi enviado pra ser minha força no sofrimento e na guerra. Você tem de lutar por mim!”, é quase o mesmo que o que ouve de Corisco: “Parece que São Jorge tá me ajudando. Precisamos dum cabra corajoso, um cabra da minha qualidade. Tou gostando da sua cara de macho”.
Ou ainda, o que Antônio diz ao cego Júlio: “Eu não queria mas precisava. Eu não matei os beatos pelo dinheiro. Matei porque não posso viver descansado com essa miséria” que também muito se aproxima do que grita Corisco: “Não deixo pobre morrer de fome!” e do que prega Sebastião: “Quem é pobre vai ficar rico no lado de Deus”. (AGUILAR, 1995, p. 109).
A esta coexistência promovida pelos discursos, Claudio Costa traz a observação das tomadas da câmera de Glauber, que se fixa através de elementos móveis, meios de transportes, que têm justamente a função de promover uma passagem, de fazer algo circular. E toda essa circulação ocorre para que a imagem surja, para que uma determinação se configure. A imagem-movimento tem por condição a passagem ou a troca que produz na aproximação de dois elementos mutuamente excludentes tais como: o vidente e o visível, o visível e o invisível, o homem e o mundo, a imagem e o som, a figura e o fundo, e assim por diante.
Nessa aproximação, uma instância pode se prolongar em outra de maneira que elas se tornem equivalentes e a circulação chegue a um fim ao se formalizar uma unificação. Nesse caso, a imagem só alcança designar, manifestar, ou, no máximo, significar o mundo, o real, o visível. Em outros casos, aproximados os domínios, uma diferença íntima entre os afetos permanece, fissura que jamais cicatriza e através da qual os domínios se comunicam e se revertem infinitamente. Nessa comunicação infinita as instâncias se transformam e o real, transfigurado, torna-se transreal. (COSTA, 2000, p. 133).
Por outro lado, Haddad conseguiu romper com esta tradição que impossibilita a convivência entre o bem e o mau, afrouxando as amarras do teatro dramático e oferecendo ao público a oportunidade de refletir, pois se o casal de cangaceiros tem o seu lado “Lampião”, tem também o lado “Virgolino”, e muitos outros, e que o ser humano é uma grande rede de possibilidades.
Finalmente, podemos afirmar que tanto Glauber Rocha, como Amir Haddad, agregou ao seu repertorio uma estética onde se privilegia a indeterminação, mostrando a incrível aderência da teoria de Iser, pois, as duas obras tornam concebível a extraordinária plasticidade dos seres humanos, que por possuir uma natureza determinável, podem expandir-se no raio praticamente ilimitado dos padrões culturais, ou seja, é da natureza humana e sua multiplicidade de padrões culturais possibilitar formação ilimitada e contínua do ser humano, e portanto da leitura ( e interpretação).

Referências bibliográficas

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