domingo, 17 de outubro de 2010

AUTO DE ANGICOS E A INTERMEDIAÇÃO DA VIOLÊNCIA

A peça a ser analisada, Virgolino e Maria: Auto de Angicos (2008), de Amir Haddad – é uma transposição do texto teatral Auto de Angicos (2006), de Marcos Barbosa, um texto que transformou todo o rumor e história acerca da personagem Lampião em um drama e mito, direcionando a platéia para fora da história e trazendo os eventos e temas da peça de acordo com a sua relevância para a realidade de nossa época, retomando a morte dos dois cangaceiros em Angicos, com uma mudança fundamental sobre a maioria das obras sobre Lampião no que diz respeito à forma da apreensão moral do mito, a partir de um novo Zeitgeist que se apresenta. A personagem Lampião deu origem a uma serie de significações, ou seja, diversas versões do mito.
Catherine Backès-Clément conceitua o mito como uma historia fictícia transmitida de geração em geração, remontando por isso mesmo a um passado original, indeterminado – que se aplica à antiguidade e sociedades indígenas – porém o mesmo parece questionável para as sociedades modernas através de sua materialização e com a possibilidade de determinação de sua origem através de uma documentação. Nesse tipo de sociedade não é só a intencionalidade dos produtores de mito, mas também a possibilidade de intervenção da própria personagem mitificada que projeta imagens que produziu para si próprio. (Backès_Clément citada em Luitgarde, 2000, p. 79)
É importante notar que quase todas as “biografias” de Lampião guardam semelhança em dizer que ele era um exímio cavaleiro, um almocreve que cruzava as fronteiras de Pernambuco, Alagoas e Sergipe, caminhos que conhecia como a palma da mão, deslocando-se na catinga com a naturalidade dos experimentados vaqueiros do Pajeú. Lampião é classificado por muitos como um cangaceiro movido pela vingança, um cangaço meio de vida e bandido manso, sendo que os Nazarenos, entre outros, eram apontados como poderosos e influentes, que com as suas perseguições, transformaram jovens alegres, honestos e trabalhadores em infelizes revoltados, corajosos vingadores da honra.
O mito Lampião é retratado nas mais diversas modalidades artísticas tais como o registro fotográfico elaborado por Benjamin Abrahão, poemas, músicas e livros, e até uma propaganda de um remédio que comparava os males que ele causava à sociedade com os distúrbios provocados pela prisão de ventre. Além disso, as suas ações são referenciadas por testemunhos orais de pessoas que com ele conviveram e noticiadas amplamente pela imprensa, o que segundo Mc Luhan não serve para dar status de realidades pois os produtos dos processos receptivos não são uma cópia de uma dada realidade (McLuhan):

[...] a realidade não é apreendida passivamente, mas vivida como construída, e as imagem do mundo assim produzida não se entende como reprodução, mas como produção, não em um sentido de uma ação intencional particular, mas como processo culturalmente mediado. Em outras palavras, a forma de experimentar o mundo depende das condições culturais da percepção, e, nesta perspectiva, processos midiáticos são vistos como fatores constitutivos e não reprodutivos da percepção. (MCLUHAN citado em OLINTO, 2009, p. 63)

Assim, todos estes relatos, ao invés de proporcionar uma forma mais nítida e cristalina da personalidade do cangaceiro acabaram por fortalecer uma imagem dicotômica de uma pessoa eminentemente boa ou decididamente má no imaginário coletivo. Lampião assume as tintas do bem ou do mal nas diversas artes, que como vimos vai da literatura de cordel até o cinema através de uma infinidade de papéis e caracterizações, que vão desde a sua apresentação como uma pessoa suave e delicada interiormente até a sua retratação como uma pessoa possuidora de uma violência impar.
Há pelo menos, dois Lampiões, um (real) que teve a sua existência real, que viveu todas as vicissitudes que um homem a margem da lei experimenta, e outro (mítico) que foi criado a partir de cada uma de suas façanhas efetivadas ou inventadas. Este último é um produto coletivo que vai cada vez mais sobrepujando o primeiro. Há uma abundante literatura sobre o cangaço, mas poucos oferecem um quadro histórico mais ou menos completo. Tem-se praticado em torno do cangaço ainda uma espécie de historia do tipo tradicional, ancorada nos heróis e nos seus grandes feitos, que faz com que a sua participação no imaginário continue crescendo.
Essa mitologização impregna a vários romances (história) como pode ser verificado, entre outros: em Lampião, Cangaço e Nordeste, de Aglae Lima de Oliveira; Lampião: Memórias de um soldado de volante, de João Gomes de Lira, no Lampião, de Ranulfo Prata.
Esse nascimento do mito pode ser observado no romance de Nertan Macedo, onde o cangaceiro é apresentado como alguém de índole boa, que somente depois de ter algum ente querido morto, resolve fazer a justiça com as próprias mãos:

[...] o velho José Ferreira acordava sempre muito cedo. E em certa ocasião, depois do aviso que lhes deram os filhos, levantou-se da rede e foi soprar o fogo para fazer café. [...], mal teve tempo de alçar a cabeça, para ver de onde partiam aqueles disparos. E quando os filhos menores acorreram, encontraram-no tombado numa poça de sangue. [...] Nessa madrugada nasceu realmente Lampião. (MACEDO, 1975, p. 38)

Essa imagem de alguém de boa índole também encontra ressonância numa imensa série de obras da literatura infantil, como por exemplo, Lampião e Maria Bonita: o Rei e a Rainha do Cangaço (2005), de Liliana Iacocca. Mas foram, sem sombra de dúvida, os escritores de cores marxistas que mitificaram o cangaceiro como um herói, um verdadeiro baluarte contra a dominação coronelista.
Conforme Vera Ferreira, filha de Lampião, (FERREIRA e AMAURI, 1999, p. 11): no Brasil, um país com larga tradição nos regimes totalitários, o culto de heróis e anti-heróis é constante desde há muito e alimenta a imaginação popular. Lampião é um produto das desigualdades sociais, da injustiça . A sangrenta profissão de bandido, outrora consagrada, na sua bravura instintiva e cega pelas cantigas populares do nordeste, com suas bravatas e façanhas selvagens, deixou de fascinar o sertanejo, cuja aspiração na vida se resumia na cartucheira cintada e rifle espelhado como pode ser constatado no poema abaixo que é atribuído a Lampião:

Eu me chamo Virgulino
Por alcunha Lampião
Sou cangaceiro afamado
Em todo alto sertão
Não levo em conta inimigo
E não encaro perigo
Estando de arma na mão (Virgulino Ferreira)

Essa imagem heróica de Lampião é retratada em As táticas de guerra dos cangaceiros (1978), de Maria Christina Matta Machado, num típico discurso da geração 68 na Universidade Brasileira mostra um Lampião desde pequeno preocupado com a justiça e como era injustiçado, em sua visão infantil, criou conceitos cada vez mais rígidos contra os potentados coronelistas e mesmo antes da morte de seu pai, já nutria ódio contra aqueles que oprimiam a população campesina, e em particular contra o capitão Lucena que não se contentou em forçar a retirada do seu pai do Pernambuco e contrariando as normas policiais atravessou as fronteiras e matou José Ferreira. A partir daquele instante morreria Virgulino Ferreira e nasceria Lampião (MATTA MACHADO, 1978, ps.22 a 24).
Dessa forma, o mito cooptado pelos escritos marxistas retrata alguém advindo de uma camada pobre da sociedade e que ao se deparar com toda a miséria e a injustiça social resolveu embarcar numa vida de crimes sem volta, se tornando uma espécie de “Robin Hood dos sertões”:

Lampião não pode ser visto como um fato isolado, mas sim como o resultado de uma época em que se processava a luta surda, empreendida pelo vaqueiro contra o senhor da terra. Daí se explica, talvez, a o motivo porque Lampião −uma fera humana segundo a imprensa da época −, era quase que venerado pelas populações mais pobres. Porque o pobre via em sua figura, a auto-afirmação, aquilo que cada um deles gostaria de fazer, mas tinha medo. Os sertanejos tinham o ideal de por um final na tirania dos coronéis e de sua política assassina e cruel: “Depois voltar para casa e viver a vida simples de sertanejo”. (MATTA MACHADO, 1978, p. 6)

Do outro lado, ou seja, o lado daqueles que acreditam que Lampião nada tem a ver com esta imagem "Robin Hood" esta, entre outros, Luitgarde Barros que em Derradeira Gesta, Lampião e Nazareno: Guerreando no Sertão (2007), vai criticar a posição de Maria Cristhina através das seguintes perguntas que não são os melhores indicativos para a repulsa de Lampião pelos potentados: “Porque Lampião procurou sempre acumular fortuna, impor terror, ser respeitado e famoso como os potentados? Por que queria ser “governador do sertão”? O que o fazia fascinado por patentes a ponto de exigir ser tratado por capitão, até o final da vida?” (BARROS, 2000, p. 82).
Para ele, o fato dos nordestinos mais pobres imigrarem para outras regiões se deve muito mais às ameaças de Lampião à sua sobrevivência, do que por causa da seca; posição que encontra eco em Pereira da Silva que na introdução de Lampião e a sociologia do cangaço, apresenta Lampião como possuidor de uma crueldade comparável a Hitler, e passivo de ser classificado, dentro dos quadros da psicopatologia, num quadro de sadismo: “Isto me faz pensar que não há uma só humanidade, mas duas: a do Bem e a do Mal. Felizmente pertencemos a primeira, pois nos repugna praticar semelhantes barbaridades” (PEREIRA da SILVA citado em CARVALHO, s/d., p. VII).
Marcos Barbosa vai transpor essa lendária relação entre Lampião e Maria Bonita para a contemporaneidade, transformando os protagonistas, que dentro do mito do Cangaço, às vezes assumem a posição de assassinos sanguinários, enquanto em outras são tidos como heróis, em um casal discutindo assuntos cotidianos e sonhos.
O autor direciona a platéia para fora da história e traz eventos e temas da peça de acordo com a sua relevância para a realidade de nossa época, retomando a morte dos dois cangaceiros em Angicos, com uma mudança fundamental sobre toda uma concepção ideológica de herói ou bandido, que ainda pode ser observada no filme Lampião, o rei do cangaço (1966) de Carlos Coimbra.
O diretor Amir Haddad traz o texto teatral Auto de Angicos, para o palco com a novidade de apresentar o casal de cangaceiros Lampião e Maria Bonita, longe dos padrões de linguagem e vestimenta estereotipados e que prevaleceram nas mais diversas áreas artísticas.
Assim, nesse sentido Haddad recria o texto de Barbosa, se afastando dos estereótipos de Lampião e Maria Bonita e o re-nomeia de Virgolino e Maria: Auto de Angicos, trazendo para o palco, não apenas a lenda, mas também dois seres humanos tão iguais a tantos outros. Essa concepção estética se afasta não só do filme Lampião, o rei do cangaço que em sua estética dramática busca criar a ilusão da personagem para o público, mas também do Auto de Angicos, que apesar da transposição do mito para a realidade atual efetuada por Barbosa, ainda apresenta uma forte característica dramática que pode ser notada através da sua estrutura dialógica. O trabalho de Haddad vai se tratar da supressão da ilusão dramática e dirigir os atores para uma encenação mais épica, numa estética pós-dramática, que não mais permite que o ator incorpore a personagem, ao mesmo tempo, que denúncia a forma dramática como uma dramaturgia a serviço da ideologia dominante.
Uma das estratégias utilizadas por Haddad para romper com essa perspectiva dramática do texto Auto de Angicos está em evitar o excesso de realismo, não caracterizando as personagens com roupas de cangaceiro ou com características físicas de Maria Bonita e Lampião. Na produção de Haddad, Virgolino é encenado por Marcos Palmeira – que está longe de ter um biótipo nordestino –, sem puxar pela perna e sem o problema do olho vazado, enquanto o papel de Maria, ao invés de ser representado por uma mulher tipicamente nordestina, foi entregue a Adriana Esteves, uma “menina loirinha suburbana ”.
A releitura do mito de Lampião efetuada por Haddad desvela o véu da ilusão proporcionado pelo cinema. Além disso, se conjugam linguagens cênicas em relação de intermidialidade, tais como a música popular, o gestual (junto com a iluminação e o cenário), a arte ritualística como na abertura peça, quando dois contra-regras desempacotam o cenário enquanto cantam a música Acorda Maria Bonita, do cangaceiro Volta Seca, e chamam o público para cantar e acompanhar com palmas a música, mostrando claramente que o espetáculo não vai buscar os recursos da mimesis.
Haddad lembra que, assim como uma mera re-contextualização do texto ou mudança midiática, necessariamente não determina uma abordagem cênica mais contemporânea e como exemplo comenta a respeito da montagem baiana de Auto de Angicos, que se distanciou bastante de uma perspectiva épica, para adotar uma encenação dramática, com as personagens Lampião e Maria Bonita caracterizadas, ou seja, buscando a “personificação” do ator a partir de trajes do cangaço, defeitos físicos de Lampião, e assim por diante. Dessa forma, Haddad, assim como Gatti (citado em SARRAZAC, 2002, p. 34), acredita que é preciso intervir na conversão das formas, pois cada assunto tem uma teatralidade que lhe é própria.
Haddad afirma ainda em sua entrevista, que evitou a todo custo o “diálogo realista”, buscando exprimir melhor a densidade de sentimentos que move os personagens e, sobretudo, valorizar a corpo, o movimento livre dos atores sem marcações, assim como no seu teatro de rua. “Seja num ambiente fechado ou de rua, o espetáculo tem que proporcionar uma verdade para cada um dos espectadores que deve ser apresentada nua e crua, e não colocada como uma essência que poucos poderão atingir”.
Dessa forma, Haddad se afasta da característica “nordestern” de Lampião, que traz implicitamente uma justificativa para a violência da personagem, como num dos hipotextos de Lampião, o rei do cangaço, o romance Lampião: Capitão Virgulino Ferreira (1975) de Nertan Macedo que, como já vimos, descreve o cangaceiro, como alguém de índole boa, que somente depois de ter algum ente querido morto, resolve fazer a justiça com as próprias mãos.
Dessa forma, longe de adotar uma posição nesta dicotomia “positivista” entre o bem e o mal, o texto de Barbosa não caracteriza Lampião nem como uma simples vítima da miséria e da injustiça social, nem como uma pessoa portadora de uma violência impar e sem sentido, como aparece na passagem que Maria Bonita lembra de um homem que Lampião matou:

MARIA. Amarrar o miserável do barbudo num poste e arrancar os olho dele a faca com as criança tudo vendo. Sangue espirrando pra todo lado... Não precisava daquilo não.
VIRGOLINO. Era o castigo dele.
MARIA. Castigo dele era morrer. Pronto. Não tinha que arrancar os olho do homem, ele ainda vivo, gritando, não. Depois ainda estourou a bala os dois olho largado no chão... Pra quê?
VIRGOLINO. É para dar o exemplo do traidor. Os outro sertão afora escuta que eu fiz aquilo, já não me trai mais.
MARIA. Tanto que eu pedi pra tu parar.
VIRGOLINO. Se eu for parar toda vez que tu pede...(BARBOSA, 2006 , p.23)

Essa passagem parece estar de acordo com o livro Pelo espaço do cangaceiro, Jurubeba, de Arthur Shaker, em que o próprio cangaceiro conta:

[...] que muitos gostavam dos cangaceiros, mas muitos não gostavam. E aqueles que não gostavam, queriam é acabar com a nação dos cangaceiros [...] todo mundo tinha medo de cangaceiro, eu mesmo tinha medo. [...] Saia a noticia que Lampião passou matando, roubando, tudo o que é ruim. Então a gente assustava, não tinha quem não tinha medo. (SHAKER citado em BARROS, 2000, p. 143)

Nessa passagem parece residir uma boa parte da busca de Barbosa em sua obra, em mostrar não só a discussão de um casal, mas também o medo como forma de controle e de poder, pois assim como conceitua o antropólogo Michael Taussig, em seu conceito de “espaço da morte”, mais do que uma violência gratuita, a violência se dá no jogo pelo poder:

O assassinato, a tortura e a feitiçaria são tão reais quanto a morte. O tema não trata da verdade do ser, mas o ser social da verdade. Não é verificar se os fatos são reais, mas a política de sua interpretação e representação. A enorme energia da historia confinada no “era uma vez”. A história que mostrava as coisas como elas “realmente eram” revelou-se o narcótico mais forte do nosso século (Benjamin). (TAUSSIG, 1993, p.15)

Taussig lembra que o processo de pensar gera novos começos, retornando a seu objeto original seguindo uma rota sinuosa, sendo que uma das características do terror é a inefabilidade, pois, à medida que não se consegue com palavras construir uma narrativa para esta sensação, o homem começa a imaginar, a construir alegorias. Taussig conceitua o “espaço da morte” como uma importante criação do significado e da consciência em sociedades onde a cultura do terror floresce. Quem está para morrer nas mãos do algoz, não acontece só fora do individuo , acontece dentro, criando uma ambiência para o leitor (TAUSSIG, 1993, p. 19-25).
Dessa forma, as culturas do terror são nutridas pela trama formada entre o silêncio e o mito, a ênfase do lado misterioso esta no rumor finamente tecido em teias de realismo mágico, fazendo com que Lampião consiga a pilhagem de alguns povoados, sem sequer precisar se utilizar da violência.
As atrocidades que Lampião efetuou, tais como: cortar "sangrar" as pessoas através de longos punhais enfiados corpo adentro entre a clavícula e o pescoço, a marcação de rostos de mulheres com ferro quente, o arrancar de olhos, o “cortar” de orelhas e línguas, e a castração de inimigos, tinha como propósito a criação do “espaço da morte”, como forma de impingir um temor mental agudo e grande parte da agonia física da morte, numa íntima dependência mútua entre a verdade e a ilusão e entre o mito e a realidade; tudo isto relacionado com o metabolismo do poder, para não falar da “verdade”:

Cruzar os dados relativos à verdade, nesse campo, é algo necessário, e é necessariamente uma tarefa de Sísifo, que ratifica uma objetividade ilusória, uma objetividade sujeita ao poder que, ao autorizar a cisão entre a verdade e a ficção, assegura o fabuloso alcance desse mesmo poder. A alternativa é ouvir essas histórias não como uma ficção ou como sinais disfarçados da verdade, mas como algo real. (TAUSSIG, 1993, p. 87)

No entanto, mesmo com a explicação antropológica para o uso da violência, Barbosa continua a evitar sentenciar moralmente Lampião, pois junta a toda essa violência uma faceta humana, ao mostrar o ambiente familiar entre os cangaceiros que riem, brincam, se divertem, cozinham, comem, lêem, dançam, fazem vaquejadas, bebem água como pessoas normais, tal como na passagem que Maria sugere uma festa para Lampião:

MARIA. É só pra animar. Pra tu não ficar desse jeito. Gosto de ver tu assim não.
VIRGOLINO. Depois nós conversa.
MARIA. Tu fala com Pedro de Cândido, manda arranjar um sanfoneiro.
VIRGOLINO. Sanfoneiro?
MARIA. Não pode não?
VIRGOLINO. É festa grande que tu está querendo, é?
MARIA. Grande, não. Festa pouca. Agora, custa arranjar um sanfoneiro? Melhor que ficar batendo forró em argola de fuzil.
Virgolino, brincando, levanta seu Mauser e procura a argola.[...]
VIRGOLINO. Olê, muié rendeira. Olê, muié rendá. Tu me ensina a fazer renda que eu te ensino a namorar/ (BARBOSA, 2006, p. 9)

Assim, Haddad, ao trazer momentos da intimidade do casal ao palco evita a perspectiva de uma configuração extremada entre o bom e o ruim, e a partir da constatação do caráter multifacetado do homem conceituado por Hall, faz a relação dicotômica entre o bem e o mal ficar mais porosa, e se aproximar da posição do filosofo alemão Friedrich Nietzsche que em Para além do bem e mal, examina civilizações de épocas passadas, depreendendo certos traços que são justamente distintos, que culminam em dois tipos fundamentais de moral, mas que não são mutuamente exclusivas, pois se mesclam até mesmo no interior de uma única alma humana:

Acrescento desde logo que, em todas as civilizações superiores e mais mistas, entram também em cena ensaios de mediação entre ambas as morais, e ainda mais freqüentemente a mescla de ambas e o recíproco mal-entendido, e até mesmo, às vezes, seu duro “lado a lado” – até no mesmo homem, no interior de uma única alma. (NIETZSCHE, 1981, p. 215)

Para Nietzsche, o escravo, o ressentido, o fraco, concebe primeiro a idéia de “mau”, com que designa os nobres, os mais fortes do que ele – e então, a partir dessa idéia, conclui, através da antítese, a concepção de “bom”, que se atribui a si mesmo. O forte, por sua vez, concebe espontaneamente o principio “bom” a partir de si mesmo e só depois cria a idéia de “ruim” como “uma pálida imagem-contraste”. Do ponto de vista do forte, “ruim” é apenas uma criação secundária, enquanto para o fraco “mau” é a criação primeira, o ato fundador de sua moral.
Assim, podemos dividir a abordagem do tema Lampião a partir de dois grandes grupos: A partir da impossibilidade da convivência entre o bem e o mau, como podemos perceber em Lampião; ou conforme Nietzsche, como uma questão perspectiva, que é mostrada em Virgolino. No espetáculo de Haddad, esse novo circuito de sentido é o próprio contexto teatral contemporâneo, que afrouxa as amarras do teatro dramático de sentido único, um teatro que institui determinadas verdades que não possibilitam qualquer tipo de reflexão e que não proporciona as mínimas condições e perspectivas de mudança.
Enfim, assim como Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas:

Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.(ROSA, 2009, p. 608)

Ou ainda conforme a musica de Sergio Ricardo e Glauber Rocha em Deus e o diabo na terra do sol, que dentro de uma ideologia marxista, fecha a questão:
Tá contada a minha historia
Verdade, imaginação
Espero que o senhor tenha tirado uma lição
Que assim mal dividido
Este mundo anda errado
Que a terra é do homem
Não é de Deus, nem do diabo. (ROCHA, 1964)

REFERÊNCIAS
BARBOSA, Marcos. Auto de Angicos. Texto não publicado. s/d.
BARROS, Luitgarde O. C. Derradeira Gesta, Lampião e Nazareno: Guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.
CARVALHO, Rodrigues de. Lampião e a sociologia do cangaço. Rio de Janeiro: Editora do livro, s/d.
COIMBRA, Carlos. Lampião, o rei do sertão. São Paulo: Cinearte Produções Cinematográficas, 1962.
FERREIRA, Vera e AMAURY, Antonio. De Virgolino a Lampião. São Paulo; Idéia Visual, 1999.
GUIMARÃES ROSA, João. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2008.
IACOCCA, Liliana e CAMPOS, Rosinha. Lampião e Maria Bonita: o Rei e a Rainha do Cangaço. São Paulo: Ática, 2005.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
MACEDO, Nertan. Lampião: Capitão Virgulino Ferreira. Rio de Janeiro: Renes, 1975.
MACHADO, Maria Christina Matta Machado.As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo: Brasiliense, 1978.
NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal. São Paulo: Hemus, 1981.
OLINTO, Heidrun. Literatura e mídia. Rio de Janeiro: Puc, 2009.
ROCHA, Glauber. Deus e o diabo na terra do sol. 1966.
SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama: Escritas dramáticas contemporâneas. Trad. Alexandra Moreira da Silva. Porto: Campo das Letras, 2002.
TAUSSIG, Michael.Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem. Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Paz e terra, 1993.