Do “Rei do Cangaço” ao “Auto de Angicos”: o caminho intermidiático de Lampião
Mestrando Luiz Zanotti[1] (Uniandrade)
Resumo:
O ensaio consiste da análise das relações intermidiais entre o filme “Lampião, o rei do cangaço” (1963) – com direção de Carlos Coimbra, baseado nos livros “Lampião, o Rei do Cangaço”, de Eduardo Barbosa, e “Capitão Virgulino Lampião”, de Nertan Macedo –; e o espetáculo teatral “Virgolino e Maria Déa: Auto de Angicos” (2008) – com direção de Amir Haddad, a partir do texto “Auto de Angicos”, de Marcos Barbosa – ; relatando o difícil processo desse trânsito intermidiático. O filme conta a história de Lampião em seu aspecto épico, com o cangaceiro se apresentando como um líder que luta a favor dos humildes contra uma aristocracia rural; enquanto o espetáculo teatral recria as últimas horas de vida e intimidade de Lampião e sua mulher Maria Bonita, momentos antes de os dois serem mortos pela polícia alagoana; privilegiando a relação amorosa do casal. Tanto a adaptação fílmica como a cênica são de difícil execução, sendo que a análise se propõe a identificar os elementos que possibilitaram a travessia dos romances para o filme e do texto de Marcos Barbosa para o espetáculo, bem como o diálogo entre as duas produções.
Palavras-chave: Intertextualidade, Intermidialidade, Lampião, Carlos Coimbra, Amir Haddad.
Um teatro sem arquitetura
Uma dramaturgia sem palco
Um ator sem papel
(Amir Haddad)
Lampião e Maria Bonita se tornaram figuras lendárias no panorama sociocultural brasileiro devido não só aos seus feitos, mas também devido a uma mídia ávida de notícias sensacionalistas e de todo um trabalho literário – onde predomina a literatura de cordel – e a musicalidade.
No que tange à representação nas diversas modalidades artísticas, de uma forma geral, as duas personagens adquiriram uma infinidade de papéis e caracterizações, que vão desde as suas apresentações como pessoas suaves e delicadas interiormente, mas que a miséria e a injustiça social fizeram com que embarcassem numa vida de crimes sem volta, com Lampião representando uma espécie de “Robin Hood dos sertões”, como no conto infantil Lampião e Maria Bonita: o Rei e a Rainha do Cangaço (2005), de Liliana Iacocca; até a retratação do casal como pessoas de uma violência impar, no texto Derradeira Gesta, Lampião e Nazareno: Guerreando no Sertão (2007) de Luitgarde Barros que desmente esse lado "Robin Hood" do cangaceiro, mostrando que os pequenos proprietários rurais do nordeste fugiam de lá para o sul do país, não por causa da seca, mas porque Lampião ameaçava o mais pobre e a sua sobrevivência.
No entanto, de uma maneira geral, Lampião, bem antes de morrer, já era tratado como herói, um nobre salteador, que tomava dos ricos para dar aos pobres, inspirando poemas, músicas e livros. Uma das poucas exceções na época foi a propaganda de um remédio que chegou a comparar os males que ele causava à sociedade com os distúrbios provocados pela prisão de ventre. Mas a referência ao cangaceiro como figura nociva era exceção.
Nossa análise procura – em meio a esta verdadeira epopéia intemidiática que contempla a música, a dança, a coreografia, a literatura adulta e infantil, o cordel, a dramaturgia, o cinema, a fotografia, as artes plásticas – verificar as relações intermidiais e intertextuais entre o filme Lampião, o rei do cangaço[2], de Carlos Coimbra e o espetáculo teatral Virgolino e Maria: Auto de Angicos[3], de Amir Haddad.
O filme Lampião (1962), assim como A morte comanda o cangaço (1960), também com a direção de Carlos Coimbra, seguiram o rastro do êxito retumbante de O cangaceiro (1953), de Lima Barreto, vencedor da Palma de Ouro em Cannes. O esquema narrativo dos filmes de Coimbra se estruturava no ‘western’ americano, num abrasileiramento que propiciou um novo gênero, o chamado nordestwestern ou nordestern[4], composto por filmes ambientados na região nordestina, espaço, onde se verificou a ocorrência do fenômeno cangaço. O novo gênero fez o encantamento da platéia através de uma temática brasileira, da indumentária original e do forte esquema musical, apesar do esquema simplório no estabelecimento do desenvolvimento do conflito.
O espetáculo teatral Virgolino, com direção de Amir Addad, baseado no texto Auto de Angicos, de Marcos Barbosa, transpõe a lendária relação entre Lampião e Maria Bonita para a contemporaneidade, transformando os protagonistas, que dentro do mito do Cangaço, às vezes assumem a posição de assassinos sanguinários, enquanto em outras são tidos como heróis, em um casal discutindo assuntos cotidianos e sonhos.
Apesar de quase cinqüenta anos de afastamento, os dois espetáculos trazem a lenda de Lampião para frente do público, mas enquanto Lampião tem uma produção cinematográfica simplória e baseada na tentativa de trazer a ilusão, a peça teatral Virgolino foi produzida a partir de elementos constituintes do teatro pós-dramático (LEHMANN, 2008), no sentido de despir-se totalmente do caráter ilusório.
A nossa análise se inicia buscando as relações intertextuais e intermidiais que caracterizam ambas as manifestações artísticas (Lampião e Virgolino), pois toda obra de arte possui relações intertextuais, não apenas, de uma forma direta, com outras obras de arte de estatuto igual ou comparável, e sim, de uma forma indireta, com todas as obras que influenciaram essas obras de igual estatuto: “De maneira mais direta: qualquer texto que tenha dormido com outro texto, dormiu também, necessariamente, com todos os outros textos com os quais este tenha dormido” (STAM, 2003, p. 226).
O filme Lampião será estudado a partir da sua característica de uma transcriação elaborada a partir dos romances: Lampião, Capitão Virgulino (1975) de Nertan Macedo e Lampião, Rei do cangaço (s/d) de Eduardo Barbosa (s/d), e do filme Rastros de ódio (1956), de John Ford.
É importante notar que Lampião é bem semelhante como a grande maioria de filmes brasileiros de cangaço[5], pois cada filme nos diz mais ou menos a mesma coisa, da mesma maneira, com os mesmos elementos. A principal característica de todos esses filmes é o seu esquema dramático – tipo faroeste americano – centrado na personagem do herói, e esse nunca é o cangaceiro do filme; a estória que nos é contada nunca é a história da personagem do cangaceiro:
Encontramos esse herói entre o bando de cangaceiros, mas ele não é exatamente um cangaceiro, sente-se deslocado, é o que poderíamos chamar de um “cangaceiro desajustado”; encontramo-lo relacionado com o cangaço, mas invariavelmente a sua relação com o cangaço são de conflito. (BERNARDET e RAMALHO JUNIOR, 2005, p. 33)
Essa relação herói-cangaceiro pode ainda ser verificada, um aspecto comum dramático dessa série de filmes, no conflito que coloca de um lado, o cangaceiro propriamente dito e seus valores; de outro, os valores que o herói opõe aos primeiros. Esses valores são geralmente figurados por uma mulher, que com o seu amor vai fazer com que o herói se desligue (ou pense se desligar) do cangaço, se opondo à personagem do cangaceiro. Essa imagem do cangaceiro em seu lado “bom”, como o governador do sertão, o justiceiro, o que dá dinheiro aos pobres, o estrategista, o líder de combate – é um tema que aparece desde o filme O Cangaceiro:
Dessa forma, o esquema dramático constante nos filmes de cangaço, e os temas e valores persistentemente valorizados, demonstram que o cangaceiro como tal não é tratado pelo cinema de cangaço. Desconhece-se o cangaço como função social aceita e reconhecida, com seus problemas específicos. Pelo contrário, esse cinema é a negação do cangaceiro como tal: enfoca-o justamente como uma espécie de excepcional; o cangaço aparece como um mal-entendido entre pessoas e instituições, um engano passageiro, característica acessória da pessoa, fenômeno que ocorreu como poderia não ter ocorrido. Assim, o cangaceiro-herói-de-filme-brasileiro-de-cangaço – dentro do enredo, com elemento dramático de maior importância – necessita sempre de uma “explicação”: há infalivelmente a explicação justificativa “de como e porque me tornei aparentemente cangaceiro, mas no fundo não sou”. O herói pode então ser “desculpado” do cangaço. (BERNARDET e RAMALHO JUNIOR, 2005, p. 49)
A visão do cangaceiro, como alguém de índole boa, que somente depois de ter algum ente querido morto, resolve fazer a justiça com as próprias mãos está presente no romance de Nertan Macedo:
[...] o velho José Ferreira acordava sempre muito cedo. E em certa ocasião, depois do aviso que lhes deram os filhos, levantou-se da rede e foi soprar o fogo para fazer café. [...], mal teve tempo de alçar a cabeça, para ver de onde partiam aqueles disparos. E quando os filhos menores acorreram, encontraram-no tombado numa poça de sangue. [...] Nessa madrugada nasceu realmente Lampião. (MACEDO, 1975, p. 38)
A violência que é justificada pela necessidade de vingança foi um dos principais motivos do sucesso do western Rastros de ódio (1956), de John Ford, onde Ethan Edwards (John Wayne) é um homem que parte em busca de vingança contra os índios que exterminaram sua família, ao mesmo tempo, que tenta resgatar, com vida, sua sobrinha.
Dessa forma, Lampião, é trabalhado dentro dessa característica “nordestern” do cinema brasileiro, com uma relação intertextual com os filmes de faroeste americano, ao mostrar a história de um jovem, filho de um pequeno proprietário rural que sabia ler e era hábil artesão em couro, que resolve vingar a morte do pai. Essa justificativa para a violência da personagem é encontrada na introdução de Eduardo Barbosa no seu livro sobre Lampião, quando fala que todos nós, bem ou mal, conhecemos as histórias de Robin Hood, de Dick Turpin, o salteador de estradas; e de Lampião; mas enquanto dos dois primeiros, só conhecemos o lado “bom”, de Lampião, só sabemos do lado “mau” No entanto, todos três foram “cangaceiros” e assaltaram, roubaram e mataram.
A lenda, entretanto, glorificou Robin Hood e Dick Turpin como dois paladinos da causa do povo, oprimido pelos senhores feudais, contra os quais lutavam, em favor da sua gente. O fenômeno Lampião é o mesmo. Todos nós temos o nosso lado bom e nosso lado mau. No Rei do Cangaço, triunfou o lado bom, depois de conhecer Maria Bonita. Assim, podemos afirmar que Lampião foi o nosso Robin Hood ou o Dick Turpin das picadas do sertão. (BARBOSA, s/d, p. 9)
Porém, se de uma maneira geral, prevalece nas artes, uma forma generosa de se representar Lampião, sempre retratando o seu lado bom e justiceiro, existem textos que apontam para uma outra perspectiva moral. Rodrigues de Carvalho (s/d) apresenta Lampião como possuidor de uma crueldade comparável a Hitler, e passivo de ser classificado, dentro dos quadros da psicopatologia, num quadro de sadismo: “Isto me faz pensar que não há uma só humanidade, mas duas: a do Bem e a do Mal. Felizmente pertencemos a primeira, pois nos repugna praticar semelhantes barbaridades” (PEREIRA da SILVA citado em CARVALHO, s/d., p. VII).
Como referencial teórico para o estudo da relação intermidial entre Lampião e Virgolino, usaremos a teoria da hipertextualidade desenvolvida por Gérard Genette (2005), que afirma:
Um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada para se traçar outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode lê-la por transparência, o antigo sob o novo. Assim, no sentido figurado, entenderemos por palimpsestos (mais literalmente hipertextos), todas as obras derivadas de uma obra anterior, por transformação ou por imitação. Dessa literatura de segunda mão, que se escreve através da leitura, o lugar e a ação no campo literário geralmente, e lamentavelmente, não são reconhecidos. Tentamos aqui explorar esse território. Um texto pode sempre ler um outro, e assim por diante, até o fim dos textos. Este meu texto não escapa a regra. Quem ler por último lerá melhor. (GENETTE, 2005, p. 8)
O objeto da poética é a transtextualidade ou transcendência textual do texto, que Genette define como “tudo que o coloca em relação, manifesta ou secreta com outros textos”. Na nossa verificação de como se dá o alinhamento de Virgolino em relação a Lampião, consideramos a relação de hipertextualidade, o que significa: “(...) toda relação que une um texto B (que chamarei hipertexto) a um texto anterior A (que, naturalmente, chamarei hipotexto) do qual ele brota, de uma forma que não é a do comentário.” (GENETTE, 2005, p. 19). Para Genette, as práticas hipertextuais podem ainda serem classificadas pelas categorias de “relação” (de transformação ou de imitação) e de “regime” (lúdico, satírico e sério), sendo que:
A transformação séria, ou transposição, é, sem nenhuma dúvida, a mais importante de todas as práticas hipertextuais, principalmente – provaremos isso ao longo do caminho – pela importância histórica e pelo acabamento estético de certas obras que dela resultam. Também pela amplitude e variedade dos procedimentos nela envolvidos. (GENETTE, 2005, p.51)
Na nossa análise, buscamos verificar os hipotextos de Barbosa, cujo texto (hipertexto) será por sua vez, um dos hipotextos do texto espetacular Virgolino de Amir Haddad. Auto de Angicos foi elaborado a partir de uma série de intertextos da figura de Lampião, que já se apresenta no inicio do enredo através da música Acorda Maria Bonita de Antonio dos Santos: “Acorda Maria Bonita / Levanta vai fazer o café/ Que o dia já vem raiando / E a polícia já está de pé”:
Virgolino. (sem se virar) Quando é que tu vai aprender a não se achegar por trás, se espreitando?
Maria não responde. Após algum tempo, retoma a conversa:
Maria: Levantou cedo. Fica indo nessa toada, daqui a pouco nem dorme mais. Ainda está escuro.
Virgolino. Clareando
[...]
Virgolino. Tem café? (BARBOSA, s/d, p. 1) Essa intermidialidade aparece também na referência ao trabalho fotográfico do mascate Benjamin Abrahão:
Virgolino. Eu falo, tu não escuta. Toda revista que eu pego, e jornal, a peste que seja, tudo tem noticiário meu. Tudo tem. Foto grande assim, que tu já viu. E já estou com vontade é de arranjar um retratista pra fazer mais pose minha e dos cabra. Foto nova, que as outra o povo já viu. (BARBOSA, s/d. p. 5)
E principalmente no filme Lampião, quando na ultima cena, Lampião e Maria Bonita são mortos pela volante na região de Angicos que é localizada no estado do Rio Grande do Norte:
De súbito, uma rajada ensurdecedora de metralhadora. Escuridão. Silêncio.
Um tempo.
Luzes. Outra vez o alarido da guerra, mas agora Lampião está morto, baleado. [...]
Um tiro. Outra vez, escuridão.
Maria. Valei-me, Nossa Senhora!
Outro tiro. Silêncio.
Um tempo.
Luzes. Lampião e Maria mortos, lado a lado. Os dois corpos decapitados. (BARBOSA, s/d, p. 36-37)
Ainda é interessante de ser verificado, como Auto de Angicos, retoma a idéia do eterno retorno presente em Lampião. Se no momento final de Lampião, Coimbra mostra um garoto colocando em sua cabeça, o chapéu que pegou de Lampião, numa clara alusão, que apesar de terem matado Lampião, outros “Lampiões” iriam aparecer. Barbosa, após a morte do casal cangaceiro, agora já vestidos com seus trajes tradicionais, faz com que eles retomem um diálogo anterior. Dessa forma, ao se apresentar Lampião como um hipotexto de Auto de Angicos , que por sua vez é o hipotexto de Virgolino, pode-se considerar que a montagem (releitura) do mito, feita por Amir Haddad, também possui importantes aspectos de intermidialidade em relação a essas duas obras, como por exemplo, na locução logo no início da encenação:
OFF: Ninguém se lembra de um baixinho simpático e de cara fechada chamado Antonio dos Santos, mas todos já ouviram falar com certeza no famoso Volta Seca, o mais jovem dos cangaceiros de Lampião.
Nessa gravação, estão fixadas na voz de Volta Seca e na maior pureza de suas origens, as cantigas do grupo de bandoleiros que por tantos anos assolou o sertão nordestino. Comecemos pela madrugada vermelha radiando no acampamento: “Acorda, Maria Bonita [...][6]”. No entanto, embora Auto de Angicos, assim como o teatro de Amir Haddad, possua vários aspectos de Lampião, o texto de Marcos Barbosa ao retomar a morte dos dois cangaceiros em Angicos, apresenta uma mudança fundamental sobre o hipotexto de Carlos Coimbra, no que diz respeito à transformação na forma da apreensão moral do mito, a partir de um novo Zeitgeist que se apresenta. Dessa forma, muito mais que uma simples imitação, essa derivação hipertextual se dá pela transformação séria, que Genette chama de transposição.
Ainda seguindo Genette, ele sugere uma divisão possível, no interior do regime sério, entre dois tipos de funções. A função prática ou sócio-cultural:
[...]ordem prática ou, se preferirmos, sócio-cultural: [...] Ela responde a uma demanda social, e se esforça legitimamente para retirar desse trabalho um proveito – donde seu aspecto freqüentemente comercial, ou, como se dizia antigamente, de “subsistência”: freqüentemente mais próximo, diria Veblen, da necessidade do que da arte. (GENETTE, 2005, p. 81)
Auto de Angicos, diferentemente de Lampião, trabalha numa trama realizada por Marcos Barbosa com a predominância do cunho amoroso e o político-social, ao encenar o casal de cangaceiros na sua vida cotidiana de um casal. O casal – composto por duas figuras lendárias – também possuem momentos de intimidade, e são iguais a qualquer outro casal. Barbosa ao ajustar o enfoque dessa trama para a realidade atual, objetiva trazer uma nova forma de apreensão, pois o texto – num panorama onde a divisão “mocinho-bandido” já não faz mais sentido frente a novos paradigmas – proporciona uma nova forma de se pensar o sujeito. “O homem moderno, que até aqui era visto como um sujeito unificado, com uma ancoragem estável no mundo social, tem a sua identidade em colapso através do deslocamento ou ‘descentração’ do sujeito” (HALL, 2004, p. 9).
Com relação à segunda função, a estética, Genette (2005, p. 82) afirma:
Esta é a sua função propriamente criativa, que ocorre quando um escritor se apóia em uma ou varias obras anteriores para elaborar aquele na qual investira seu pensamento ou sua sensibilidade de artista. Este é evidentemente o traço dominante da maior parte das ampliações, de certas continuações, e das transposições temáticas.
A função estética nessa análise intermidiática é de suma importância, pois, para Haddad[7], a mera re-contextualização do texto, necessariamente não determina uma abordagem cênica mais contemporânea. Como exemplo ele comenta a respeito da montagem baiana de Auto de Angicos, que se distanciou bastante de uma perspectiva épica, para adotar uma encenação dramática, com as personagens Lampião e Maria Bonita caracterizadas, ou seja, buscando a “personificação” do ator a partir de trajes do cangaço, defeitos físicos de Lampião, e assim por diante. Dessa forma, Haddad, assim como Gatti (citado em Sarrazac, 2002, p. 34), acredita que é preciso intervir na conversão das formas, pois cada assunto tem uma teatralidade que lhe é própria.
Assim, nesse sentido Haddad cria Virgolino, se afastando dos estereótipos de Lampião e Maria Bonita, ao re-nomear a peça como: Virgolino e Maria Déa: Auto de Angicos, trazendo para o palco, não apenas a lenda, mas também dois seres humanos tão iguais a tantos outros. Essa concepção estética se afasta não só de Lampião, e sua estética dramática que busca criar a ilusão da personagem, mas também do Auto de Angicos, que apesar da transposição do mito para a realidade atual efetuada por Barbosa, ainda apresenta uma forte característica dramática que pode ser notada através da sua estrutura dialógica. O trabalho de Haddad vai ser tratar da supressão da ilusão dramática e dirigir os atores no que diz respeito à uma encenação mais épica, numa estratégia de encenação que podemos chamar de pós-dramática, que não mais permite que o ator incorpore a personagem, ao mesmo tempo que denúncia a forma dramática como uma dramaturgia a serviço da ideologia dominante.
Uma das estratégias utilizadas por Haddad para romper com essa perspectiva dramática do hipotexto Auto de Angicos está em evitar o excesso de realismo, não caracterizando as personagens com roupas de cangaceiro ou com características físicas de Maria Bonita e Lampião:
Quem o visse, gelava. Mais ainda, depois da morte do irmão Antonio, quando abandonou os cabelos ao crescimento e as unhas se lhe formaram garras recurvas, aduncando-se, como bicos numerosos, de aves esfaimadas. (MACEDO, 1975, p.15)
Assim, de acordo com Haddad, na sua produção, Virgolino é encenado por Marcos Palmeira – que está longe de ter um biótipo nordestino –, sem puxar pela perna e sem o problema do olho vazado, enquanto o papel de Maria Déa, ao invés de ser representado por uma mulher tipicamente nordestina, foi entregue a Adriana Esteves, uma “menina loirinha suburbana[8]”.A releitura do mito de Lampião efetuada por Haddad desvela o véu da ilusão proporcionado pelo cinema. Além disso, se conjugam linguagens cênicas em relação de intermidialidade, tais como a música popular, o gestual (junto com a iluminação e o cenário), a arte ritualística da abertura e do final da peça. Na abertura do espetáculo, dois contra-regras desempacotam o cenário enquanto cantam Acorda Maria Bonita, e chamam o público para cantar e acompanhar com palmas a música. Na parte final da encenação, Virgolino e Maria, depois de mortos, sobem para duas posições que se encontram num plano superior ao palco e colocam as suas vestes de cangaceiro. Depois descem de novo para o palco, dando as costas um para o outro, numa clara relação de intermidialidade com os bonecos de barro criados pelo mestre Vitalino, que está presente no filme Vitalino/Lampião (1969) de Geraldo Sarno.
Haddad afirma ainda em sua entrevista, que evitou a todo custo o “diálogo realista”, buscando exprimir melhor a densidade de sentimentos que move os personagens e, sobretudo, valorizar a corpo, o movimento livre dos atores sem marcações, assim como no seu teatro de rua. “Seja num ambiente fechado ou de rua, o espetáculo tem que proporcionar uma verdade para cada um dos espectadores que deve ser apresentada nua e crua, e não colocada como uma essência que poucos poderão atingir”.
Virgolino evita a perspectiva do Nordestern, que apresenta em sua configuração uma definição extremada entre o bom e o ruim, e que a partir da constatação do caráter multifacetado do homem conceituado por Hall, ficou sem sentido. Essa relação dicotômica entre o bem e o mal, foi abordada pelo filosofo alemão Friedrich Nietzsche em Para além do bem e mal, que ao examinar civilizações de épocas passadas, depreendeu certos traços que são justamente distintos, que culminam em dois tipos fundamentais de moral, mas que não são mutuamente exclusivas, pois se mesclam até mesmo no interior de uma única alma humana:
Acrescento desde logo que, em todas as civilizações superiores e mais mistas, entram também em cena ensaios de mediação entre ambas as morais, e ainda mais freqüentemente a mescla de ambas e o recíproco mal-entendido, e até mesmo, às vezes, seu duro “lado a lado” – até no mesmo homem, no interior de uma única alma. (NIETZSCHE, 1981, p. 215)
Para Nietzsche, o escravo, o ressentido, o fraco, concebe primeiro a idéia de “mau”, com que designa os nobres, os mais fortes do que ele – e então, a partir dessa idéia, conclui, através da antítese, a concepção de “bom”, que se atribui a si mesmo. O forte, por sua vez, concebe espontaneamente o principio “bom” a partir de si mesmo e só depois cria a idéia de “ruim” como “uma pálida imagem-contraste”. Do ponto de vista do forte, “ruim” é apenas uma criação secundária, enquanto para o fraco “mau” é a criação primeira, o ato fundador de sua moral.
Assim, podemos dividir a abordagem do tema Lampião a partir de dois grandes grupos: A partir da impossibilidade da convivência entre o bem e o mau, como podemos perceber em Lampião; ou conforme Nietzsche, como uma questão perspectiva, que é mostrada em Virgolino. No espetáculo de Haddad, esse novo circuito de sentido é o próprio contexto teatral contemporâneo, que afrouxa as amarras do teatro dramático de sentido único, um teatro que institui determinadas verdades que não possibilitam qualquer tipo de reflexão e que não proporciona as mínimas condições e perspectivas de mudança.
O público de Virgolino, ao deixar o teatro, leva em si, uma experiência única, e percebe que o cangaceiro tem o seu lado Virgolino, como também tem o lado Lampião, e muitos outros e que o futuro é uma grande rede de possibilidades.
Referências Bibliográficas
BARBOSA, Eduardo. Lampião: rei do cangaço. Rio de janeiro: Edições de ouro, s/d.
BARBOSA, Marcos. Auto de Angicos. Texto não publicado. s/d.
BARROS, Luitgarde O. C. Derradeira Gesta, Lampião e Nazareno: Guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.
BERNARDET, Lucila R. e RAMALHO JUNIOR, Francisco. Cangaço: o nordestern no cinema brasileiro. Brasilia: Avathar, 2005.
CARVALHO, Rodrigues de. Lampião e a sociologia do cangaço. Rio de Janeiro: Editora do livro, s/d.
CLÜVER, Claus. Estudos Interartes: Introdução crítica. Tradução do inglês de
Yung Jung Im e Claus Clüver. In: BUESCU, Helena Carvalhão; DUARTE, João
Ferreira; GUSMÃO, Manuel. Floresta encantada: novos caminhos da literatura
comparada. Lisboa: Dom Quixote, 2001.
COIMBRA, Carlos. Lampião, o rei do sertão. São Paulo: Cinearte Produções Cinematográficas, 1962.
GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad. de Luciene Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Letras, 2005.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. de Thomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de janeiro: DPA Editora, 2004.
IACOCCA, Liliana e CAMPOS, Rosinha. Lampião e Maria Bonita: o Rei e a Rainha do Cangaço. São Paulo: Ática, 2005.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. de Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
MACEDO, Nertan. Lampião: Capitão Virgulino Ferreira. Rio de Janeiro: Renes, 1975.
NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal. São Paulo: Hemus, 1981.
SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama: Escritas dramáticas contemporâneas. Trad. de Alexandra Moreira da Silva. Porto: Campo das Letras, 2002.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Trad. de Fernando Mascarello. Campinas: Papirus, 2003.
[1] Luiz Zanotti
E-mail: luizzanotti@terra.com.br
[2] Que chamaremos simplesmente de Lampião no decorrer dessa análise.
[3] Que chamaremos simplesmente de Virgolino no decorrer dessa análise.
[4] O neologismo Nordestern é uma criação do pesquisador Salvyano Cavalcanti de Paiva (CAETANO, 2005, p. 11)
[5] O cangaceiro, A lei do Sertão, A morte comanda o cangaço, Três cabras de Lampião, Entre o amor e o cangaço (BERNARDET e RAMALHO, 2005, p. 34).
[6] Transcrito da gravação em vídeo do espetáculo gentilmente cedido por Paula Salles da Primeira Página produções culturais.
[7] Entrevista com o diretor Amir Haddad realizada em 1º de junho de 2008.
[8] Conforme Haddad em sua entrevista.
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